para o reino do Sujoeste (não, não vou ao festival)
porque é que não fazemos uma caracolada na Zambujeira?
Para não variar, a dica estava certa. Naquela noite, o “dealer”, conforme o informador afirmara, estava à hora certa no local certo. Restava agora a perspicácia, paciência e sorte para que fosse fisgado com a boca na botija. O Bairro da Liberdade adormecido oferecia dentro da sua degradação total um óptimo disfarce para aguardar o “correio” que vinha do sul de Espanha, longe dos olhares incómodos da bófia, em especial dos tipos do giro, facilmente controláveis pela rotineira passagem das rondas em pontos chave. Os espreitas do bairro, quais batedores atentos às movimentações do inimigo, faziam parte do jogo de gato e rato entre polícias e traficantes.
Ficámos a observar. O chefe da equipa, do interior do 131 volumétrico/Abarth, estudava os movimentos do “mafioso”, longe do campo de visão deste, através do contacto rádio de uma outra brigada, estrategicamente colocada no interior da caixa de uma velhinha Transit, de vidros espelhados e pintura desgastada, ao lado da qual o meliante estacionara. Via rádio, um dos elementos da equipa sussurrava os pormenores da viatura alvo, de forma quase imperceptível, para não levantar suspeitas. Claro que as forças para falar com “vontade” não seriam lá muitas; eram cerca de 23H00 e estavam ali dentro daquela lata desde as 14H00, sem comer, beber, tossir ou mesmo mexer muito as pernas, de forma a não dar nas vistas. Incómodo, sem dúvida, garanto eu, mas imaginem a quantidade de coisas que, mesmo que se vá prevenido antes, dão vontade de fazer dentro de um espaço exíguo como aquele, que vão das necessidades mais básicas da fisiologia humana, à obrigatoriedade de comunicar unicamente por gestos ou por escrito. Não esquecer que nos inícios da década de noventa não havia toda a panóplia de meios de comunicação pessoal, com jogos extras e mensagens, bem tudo aquilo que agora nos inferniza a privacidade. Estava-se no advento dos jogos de tetris que, além de muito caros, quem os tinha, não conseguia tirá-los facilmente da esfera do poder dos seus petizes para queimar o tempo nestas longas esperas!!... Mas vamos à descrição da máquina do bandido. Sem dúvida, uma máquina de sonho. O Honda Prelude 4wd (brinquedo com quatro rodas direccionais), era um adversário de respeito. Os seus cento e muitos cavalos de potência não eram algo que preocupasse os quase 130 do Fiat, mas sim a mobilidade que aquela bomba esguia, de tracção dianteira e toda uma panóplia de inovações tecnológicas, por certo, bem mais jovem que o velhinho tracção posterior, que soprava a cada aceleração mais puxada e que fazia baixar o ponteiro do tanque de combustível. O bicho comia uma média de 22 aos cem, mas nunca deixara a malta envergonhada.
Vamos ao que interessa nesta estória. O tipo do Prelude sai e dirige-se à cabina telefónica plantada no passeio contíguo. Fala breves minutos e volta para o interior. Arranca com o carro, imprimindo logo de início uma velocidade digna de Senna (era o piloto da moda nessa altura), lançando o cavalo branco em condução violenta e descuidada pelo asfalto esburacado do bairro, passa a apertada ponte do Tarujo, ladeia o Casal da Sola. Pelas manobras, de imediato chegamos a uma conclusão. O correio alterou o local da entrega. O mais discretamente possível, a equipa do Abarth inicia a perseguição. O suspeito segue em direcção à Rua de Campolide, sobe esta e entra na Rua do Arco de Carvalhão, depois, Maria Pia; no entroncamento da Meia Laranja, sobe em direcção ao Cemitério dos Prazeres, contorna a rotunda e toma o caminho da zona das Amoreiras. Chegados aqui, observamos que um outro veículo, um BMW M-3 Baur faz sinais de luzes ao nosso “amigo” e ambos se precipitam para o interior do estacionamento subterrâneo de uma das torres. Após um pequeno compasso de espera, seguimos também para o interior. Atrás de nós, entra outra equipa que entretanto se juntara na discreta perseguição. Após alguns minutos de espera, saímos dos veículos e não tarda a detectarmos o Honda estacionado entre dois outros veículos. Do BMW, nem sinal de vida. Aguardamos o que a seguir se vai passar. As informações recolhidas já tinham apontado para a possibilidade de as negociatas serem efectuadas no interior de um escritório alugado no edifício. Ao fim de uma hora, um atento e diligente segurança intervém com um dos homens de atalaia. Informa-o que, mesmo sendo polícia, não pode permanecer naquela parte do estacionamento, já que é área reservada a residentes. O cívico identifica-se novamente e “educadamente” manda-o ir dar uma voltinha ao “bilhar grande”; ofendido, o vigilante lança para o seu intercomunicador portátil um relatório, à laia de queixinha, para o seu supervisor. O Chefe da equipa aproxima-se e mete água na fervura. O dedicado guarda do estacionamento, não vai na conversa da bófia, “estrilha” que nem um possesso (ainda hoje lamento não lhe ter dado motivos para chorar a sério) e começa a pedir reforços pelo rádio. Gera-se a confusão e o Comissário “convida-o” a entrar numa das viaturas policiais com um par de pulseiras para se entreter a procurar abri-las. Eis que no meio desta confusão, abre-se a porta de acesso aos elevadores de acesso aos escritórios e saem do seu interior os “negociantes”. De imediato se apercebem que algo não está bem e precipitam-se para o Honda. São seis, mas dois são dispensados dos serviços dos seus cobardes patrões; ficam logo ali, sem resistência, disparando um chorrilho de insultos para com a ex-entidade patronal. Enquanto isto, o Honda faz marcha-atrás, abalroa duas viaturas com o seu generoso pára-choques traseiro, estilo americano, e arranca pelas estreitas galerias do estacionamento. Acto contínuo, o Chefe da missão arranca conduzido pelo experiente motorista. Conseguem alcançar os fugitivos, quase se colam à traseira, mas não há espaço para ultrapassar. Os carros ressaltam nas bandas limitadoras de velocidade. Roda-se nuns vertiginosos 50/60 km/h. Os fugitivos não olham a despesas. Não tirando partido da tecnologia da máquina, de nada valem as quatro rodas direccionais batem em tudo o que se lhes atravessa no caminho. O veículo é mais longo que o “escorpião” que sopra atrás de si e que conta com a vantagem de ter tracção atrás. O Chefe abre então o tejadilho do Fiat, finca os pés na consola e na pega da porta do pendura, encosta as costas à janela do tecto, empunha com ambas as mãos a PPK, apoia os braços sobre o tejadilho e efectua vários disparos na direcção dos pneus da viatura
- Mais rápido com esta merda, que está a fugir….
O Motorista acelera, o vacuómetro entra no red-line, a máquina debita toda a sua força aventa-a para as rodas, aproxima-se do Honda e eis que do nada surge uma densa parede de espesso fumo branco que invade todo o campo de visibilidade da viatura policial. Perante isto, o motorista trava a fundo, por milagre não bate em carros estacionados. O Chefe, encolerizado grita, barafusta:
- Os tipos estavam à espera de ser interceptados; têm sistema de fumigação para fuga avance já, basta seguir o rasto de fumo que apanhamos os gajos lá fora. Arranque esta medra; porra, de que está à espera?-grita colérico.
O pobre motorista, desesperado sai do carro e grita – Acabou, não dá mais!...
- Arranque, já disse, é uma ordem, que raio! – tornou o comissário verde de ira.
- Veja se consegue o Sr. – replicou o motorista.
- Eu? Mas quem manda aqui?!?!? É uma ordem, ponha já o carro em andamento. – continuou a disparar o chefe enquanto entrava no carro.
Ao entrar no carro, desapareceu literalmente no meio de uma mancha de fumo branco. Breves segundos bastaram para reaparecer do meio daquele misterioso nevoeiro; D.Sebastião (se aparecer, como reza a história) não fará melhor, estou certo. Olha para o motorista, aproxima-se deste, que se encontra em frente ao capôt e ambos olham estarrecidos para a lata. O dedicado comissário depressa conclui que aqueles furinhos, bem ali na zona do radiador da máquina não deveriam ali estar. De imediato, do alto da sua altivez, defendeu o seu orgulho (e falta de pontaria), escondendo a brecha nele aberta, lamentando a fuga do criminoso e rematando: - Mais um pouco e os tipos tinham-nos limpo, tanto a mim, como a si - disse pondo o braço confortador sobre o desolado motorista. O Escorpião estava ferido, não por outro da mesma espécie, mas por quatro “pulgas” de chumbo com uns meros
Em tempo:
Resta referir que nem tudo acabou mal; o perseguido acabou por ser interceptado à entrada do Viaduto Duarte Pacheco por carros patrulha entretanto informados da ocorrência.
Lisboa, linha verde do Metro, 17H35.
Observo o tipo que se senta à minha frente. É o protótipo do viajante ocasional da toupeira urbana. Salta à vista; contrasta com os habituais utentes, esses que quase atingem o estatuto de residentes. Os olhos não param. Os dedos contorcem-se uns contra os outros num nervoso miudinho que complica o sistema nervoso ao mais paciente dos pacientes. Parece engolir com o olhar todos os recantos da carruagem; parafusos, publicidade, até os grafites improvisados, cravados a golpe de navalha em vidros e bancos (à falta de tinta urge o improviso), enfim, tudo aquilo que é visível dentro de um comboio. O meu companheiro de viagem encafuado, melhor, emparedado (quase espremido) entre a parede e uma matrona de carnes rechonchudas, humedecidas pelos grossos bagos de suor que brotam da sua pele e se misturam com o odor de perfume “made in Taiwan”, resfolegada no assento, que diga-se de passagem até para as minhas modestas e secas “assentadeiras” acho pequeno, olha em seu redor com a cara de terror que têm os aprisionados numa escura e tenebrosa caverna.
Consigo observá-lo sem que ele se aperceba. Os óculos escuros, tipo “Martini-man”, são de uma eficácia total. Eis que dou por mim a ser observado dos pés à cabeça enquanto ele crê estar eu deliciado a mirar uns fantásticos (embora generosos, bem delineados) nadegueiros da jovem que segue em pé no corredor, a meu lado, insistindo em manter aquela zona a escassos centímetros da minha cara. Nestas ocasiões, digo eu, bem que dava jeito a visão binocular autónoma dos camaleões; sempre se juntava o útil ao agradável, prestando mais atenção aos pormenores.
O tipo continua a mirar-me de uma forma que roça o “tirar as medidas”; reparo que faz o mesmo à ninfa que se sentou a meu lado ao mesmo tempo que eu o fiz. É atrevida e descontraída a moçoila. Não tem problemas em dar largas à sua área de acção e expande-se no assento, encostando-se a mim com uma descontracção que quem olhe de fora invejar-me-à (“um tipo destes com um naco daqueles” - seria o comentário de um observador mais atento!) Porra!!! Com tanta mulher aqui dentro, até o clone da Odete Santos, sentada ali mesmo à frente, teria a minha condescendência para com os olhares fixos e lascivos sobre a minha pessoa; agora um gajo, isso não, não é admissível.
Carteirista, não é. Pelo menos, conhecido meu, não é. Será aprendiz? Não vislumbro nenhum dos “habitues”, desde o mais cotizado ao menos hábil. Nem mesmo as “encostas” e “muletas” do costume se vislumbram. Será hoje o meu dia de sorte? Desde o Euro 2004 que não referencio novos mestres do abafo do “cabedal”.
Chego ao Intendente. Em manobra estudada, levanto-me com cuidado de modo a não ser notada a artilharia dissimulada sob a fralda da camisa. Coloco-me estrategicamente encostado ao varão central do patamar de saída. Coincidência? Bingo? O tipo secunda o meu gesto, levanta-se e quase se cola a mim e à jovem que viajava encostada a meu lado e que também veio para perto da porta. Mau! Ou vens para fazer a carteira ou então queres aliviar as carências afectivas… Dou-lhe o flanco (sei que se vão rir desta parte, mas não retirem a parte do contexto) na esperança que o gajo invista contra o bolso traseiro. Avanço para a porta, faço a paradinha e observo o “suspeito” através do reflexo do vidro da mesma. Eis que o fulano se aproxima, quase se encosta; aguardo a paragem e o solavanco fatal que dá a cobertura ao encontrão da praxe. Chegou o momento, abre-se a porta precipito-me, junto com os restantes para o exterior, mergulho no funil que os que aguardam entrada sempre formam, avanço para a gare e eis que, pelo canto do olho, observo a abonada cachopa que seguia junto a mim, rodopiando sobre um pé enquanto esganiça um “ai” e desfere uma real “latada”, daquelas à antiga, na cara do meu alvo.
Porco – grita ela.
Fodassss…!!! – lamuria ele.
Bem feito – replica um terceiro.
No meio disto, na minha condição de simples observador/respeitador, invejo o tipo. Afinal o mariola era um rebarbado qualquer, que sabia o que queria (claro que em matéria de limites, razoáveis, socialmente falando, era limitado) e arriscava a integridade do seu facies (e vergonha claro, isto contando que a tem!) em detrimento de uma fugaz passagem dos “garfos” pelo "monumento" visado. Que coragem!!
Subindo as escadas rolantes, ao passar por mim, a esfregar a cara no local do estrafegado impacto, o sacana, sorrindo, lança-me um olhar de triunfo e dispara:
- Porra, pensava que era a sua namorada, amigo…
- Pois, infelizmente não era! – replico em tom de gozo.
- Por isso, arrisquei… quem não arrisca!... G’anda cú… sim senhor, g’anda cú…
Lá foi o tipo; afinal conseguiu aquilo que queria (pago a preço de estalo, não de saldo, mas conseguiu).
Ele há tipos com uma lata!
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