23 de dezembro de 2009
A Dona Graça
O meu prédio sempre foi, na primeira pessoa, a Dona Graça. Era ela que nos acolhia à entrada, fiscalizava os desconhecidos e atentamente recolhia a roupa deslargada dos varais e entregava a quem de direito. Uma vez extenuada entrei em casa e deixei a porta da rua aberta, acordei com a Dona Graça e uma amiga, ambas na casa dos setenta e tal, armadas de esfregona para dar cabo dos ladrões, se preciso fosse para me salvar. E tive que disfarçar a vontade de rir e ouvir um raspanete por ser tão distraída. A Dona Graça fazia reluzir os latões e o prédio cheirava a limpo, um limpo saudável, que fazia a inveja de todos os meus amigos. Quem me dera uma porteira como a tua diziam eles. Contou-me que tinha um cancro e as suas preocupações com o futuro dos seus. O processo foi demorando uns anos. Sexta-Feira passada jantava com um amigo e o filho tocou-me à porta e disse. Não sei se sabe, ela morreu, ela não merecia. Sábado gastei o dinheiro que tinha destinado à prenda de Natal dela em flores. Em cor de rosa, porque assim era ela, por dentro uma menina triste e intrépida, que estimava os seus. Não entro no prédio que não me lembre dela. Se ela até me salvou num elevador quando nele fiquei encalhada, impedindo o vizinho do lado de empunhar um martelo e espatifar a ferragem e eu enregelada de medo de ir por ali abaixo. Afecto é afecto e exerce-se no dia a dia. Falava sempre com ela um bocadinho às vezes muito, dei-lhe alguns abraços em maus momentos. No velório fiquei rouca por querer conter as lágrimas. Comentei com a minha sobrinha outro dia isto de não me conseguir esquecer dela sempre que entrava em casa e ela disse, também eu tia. Naturalmente amamos a quem nos trata bem. E também naturalmente fica aquela incompletude. Dirão, tudo isto por uma porteira do prédio. E eu direi, o amor é ditado pelo bem-querer recíproco e sossegado. E não era uma porteira, era a minha Dona Graça.
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16 comentários:
Adoro este blogue.
Bom Natal e um 2010 cheio de esperança.
Anad
lindo t.!
estou de lagrimas nos olhos em vesperas de natal!
Os holandeses dizem," Heb een brok in mijn keel".
"tenho um nó na garganta", de ter lido o teu texto. como a Dona Graca já nao há muita gente assim... é pena.Um abraco T.
Zé ,Holanda.
Boas Festas Ana D:)
Beijinho para ti, J:)
Um abraço Zé e infelizmente é verdade o que diz.
Também me lembro de tantas pessoas que já partiram, cada vez que entro em certos lugares, cada vez que me vêm certos cheiros ao nariz ou ouço certas palavras...
Fica sempre aquela sensação que uma página da nossa vida se fechou de vez e que infelizmente, nunca mais voltaremos a ver essas personagens do livro da nossa vida.
É sempre tão triste...
querida T,
as memorias q ficam no nosso coracao , associadas a cheiros , imagens , sons , vozes , afagos e bons momentos sao dignos de uma pessoa com P grande como tu
Feliz Natal e q Deus te abencoe hoje e sempre por seres como es , que sejas feliz tenhas muita saude e nos continue a inundar de recordacoes e momentos bonitos como este q fazem os olhos inundar de lagrimas
um beijo
23 Dezembro, 2009 12:48
...
Pois é, Nuno e Paula. E o Natal é a época em que recordamos muitas dessas "nossas" pessoas que já se foram.
Obrigada querida Paula. Tudo de bom para ti e para os teus. Um abraço muito amigo.
MCV:)
São estas pessoas que passam na vida de uma forma simples mas generosa, aquelas que mais acabam por nos marcar. Penso ainda que são elas que fazem a História e ficam na(s) nossa(s) memória(s)pelos melhores motivos. E tudo isto - a História com maiúscula também é feita destes discretos seres - me faz lembrar um dos textos mais bonitos de sempre cujo título é 'Perguntas de um operário letrado':
«Quem construiu Tebas, a das sete portas?
Nos livros vem o nome dos reis,
Mas foram os reis que transportaram as pedras?
Babilónia, tantas vezes destruida,
Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas
Da Lima Dourada moravam seus obreiros?
No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde
Foram os seus pedreiros? A grande Roma
Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu?[...]»
Os afectos explicam tudo, Teresa:)
É claro que explicam, T, e eu para aqui a 'estender um lençol'...=D
(mas estes versos do Brecht encantam-me)
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