13 de julho de 2005

Quelimane


Lembrei-me de tudo isto, talvez por causa da resenha histórica do Gasel, me ter transportado à elencagem das dinastias deste reinado português. De imediato fui transportada à sala de aulas, numa escola primária em Coimbra, com a Dona Fernanda a olhar-nos de forma inquisidora e nós de batinhas brancas, a recitar reis, rainhas, heróis e conquistadores. Não podíamos falhar uma, ou a vara muito fininha chegava a qualquer lado e zás, era carolada certa. Por isso, naquele tempo, em que era obrigatório ter memória e exercê-la, ter voz audível e presença de espírito eram outros valores fundamentais à sobrevivência no sistema de ensino.

Lembro-me perfeitamente de ser chamada ao quadro e de ter que indicar e explicar nos mapas de Portugal e das colónias (era tanto território meu Deus), as montanhas, os rios e as minhas predilectas, as linhas férreas. Nunca percebi, nem percebo agora, a utilidade de decorar estações, linhas e quiçá apeadeiros, mas lembro-me que gostava imenso de não falhar. Aqueles nomes faziam-me sonhar. Eram Benguela, Limpopo e sei lá que mais. A minha palavra favorita era Quelimane. Esta era a palavre chave. Imaginava logo caçadores, bichos poderosos, feroz vegetação. Ou seja uma África que conhecia pelo Júlio Verne e outros livros de aventuras. Quelimane era o que era. Dava o toque para eu desligar e sonhar, alheia ao crucifixo e às fotos de dois senhores feios mesmo à minha frente.




Tempos que eram outros tempos. O politicamente correcto não existia e a história do D.Pedro comer o coração dos matadores de Dona Inês de Castro parecia-me normal. Ou o Marquês pôr os Távoras a fumegar. Éramos ensinados a conhecer a história através dos vultos importantes e todo o resto não interessava para nada. Passados uns anos porém, aprendia Lenine e Marx no liceu e conhecia a enorme aventura da luta de classes. Malhas que o Império tece.

Em minha casa entrava o República e o Diário de Lisboa. O meu pai ensinava-me a ver a diferença entre o que era a verdade e o que era encenado, pela leitura de um jornal. Claro que a Época e o Diário de Notícias eram um exemplo perfeito, de como o pais perfeito ia bem. Outro dia emocionei-me a ver num programa de televisão, imagens da época de soldados que iam defender a pátria dos terroristas. Diziam nessa peça, que essas imagens chegaram a ser proibidas, devido à perturbação emocional que causavam, pelo seu pesado desespero. Encenações diversas, fui criada num país de papelão, permanentemente adaptado e reinventado.

Por isso o Daniel Filipe inventou a invenção do amor:

" É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los antes que seja tarde
e a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração das pessoas
Fechem as escolas Sobretudo
protejam as crianças da contaminação
uma agência comunica que algures ao sul do rio
um menino pediu uma rosa vermelha
e chorou nervosamente porque lha recusaram
Segundo o director da sua escola é um pequeno triste inexplicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão
Aplicado no entanto Respeitador da disciplina
Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos
Ainda bem que se revelou a tempo Vai ser internado
e submetido a um tratamento especial de recuperação
Mas é possível que haja outros É absolutamente vital
que o diagnóstico se faça no período primário da doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
de que fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade "

É sonhar Quelimane, dentro duma bata manchada com tinta permanente.
Soletrar nove letras.
Q U E L I M A N E. Hoje à noite sonhei com animais ferozes.

1 comentário:

Miguel Gil disse...

Este texto é belo demais para se elaborar um comentário que não comece por:
- Obrigado T. por este momento sublime.
Ainda bem que foste contaminada pela ‘Invenção do Amor’.
Viajei com a leitura. Desde o tempo dos ensinamentos ocos com batas brancas e vara fina, intervalados pelos desvarios de sonhar, até à enérgica juventude alimentada pela ‘Invenção do Amor’.
T. não retenho o nome dos apeadeiros mas adoro que continues sonhando com Quelimanes e contamines crianças, jovens e velhos com estas deliciosas palavras.