O som da travagem de uma composição atirou-nos para fora da
inóspita sala-de-espera colocando-nos no gélido cais da gare. Afinal tratava-se
de um comboio de mercadorias a fazer compasso de espera pelo intercidade que
aguardávamos.
- Aquela ali não tem frio!
Afirmou o meu companheiro de espera, referindo-se a uma
adolescente que se apresentava em calções, procurando meter conversa de passar
tempo.
- Sabe, nesta idade o espírito aquece a alma!
Respondi assim à solicitação de conversa.
Ora bem, estávamos
ali os dois encasacados e enrolados no cachecol, ele de boné, transmitindo-me a
imagem de um pacato homem que já passou a meia-idade.
A conversa foi correndo pelos temas mais diversos:
agricultura em Portugal ou a falta dela; a produção das nossas fábricas; a
produtividade e a boa imagem lá fora do trabalhador português; o desvio das
sedes fiscais das empresas do PSI 20; e outros temas da actualidade política e
social.
Eu com o meu discurso optimista, ele com uma visão menos
animadora da situação, mas consciente da boa qualificação dos portugueses. E de
repente pergunta-me:
- Mas será que eles não sabem disto?
- Claro que sabem! Parece que não, mas sabem!
- Não! Não sabem! Pois parece-me que só vão saber quando
alguns começarem a acordar com um buraco de bala na cabeça!
Nem de propósito o intercidades imobiliza-se na gare, o que
permite esconder a minha falta de resposta e inquietação pela quase
concordância.
Avisto nos degraus do comboio quem esperava, despeço-me:
- Boa noite, haja saúde!
Enquanto caminho pela gare, respondo ao meu desassossego:
- Cuidado com a fúria do manso.
Foto de Daniel Lourenço http://autoalgarvende.blogspot.com
3 comentários:
De todo me considero mansa, mas também não me imagino a pegar numa arma, não é o meu mundo (trabalhei num sítio em que chegava a estar menos de um metro dos coldres das armas dos polícias e... não gostava!).
Mas devo dizer que já me questionei sobre o assunto! Será que qualquer dia alguém perde o autocontrolo e é o descalabro? Ou, pior ainda (pelo menos na minha perspectiva), será que vamos chegar ao ponto em que a coisa só lá vai a ferro e fogo?
Assusta-me muito pensar que o "manso se pode enfurecer"!
Luísa, sei, por característica própria, como é a explosão de um sereno a passar-se dos carretos.
Considero que é sempre preferível o vulcão ir periodicamente libertando alguma da sua energia explosiva.
Mas está tudo tão calmo ...
Perfeitamente de acordo contigo.
A fúria de um manso é terrível, porque é forçada por extremismos.
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