"Para além do passadiço de S. Vicente de Fora é outro mundo. O tempo não teve ali a mesma velocidade que no resto da cidade. Enquanto Lisboa. se alargava pela ribeira do Tejo e crescia pelas avenidas, alastrando pelos terrenos da Ajuda e Benfica, de Telheiras. de Alvaiade, da Charca, do Arneiro, da Fonte do Louro, do Vale Escuro, desde Algés até Sacavém; enquanto fervilhava na azáfama das construções : enquanto as novas ruas se rasgavam nas quintas dos arrabaldes de outrora : enquanto se multiplicavam os trilhos dos eléctricos e as carreiras de autocarros; enquanto se esventravam as avenidas recém-construídas na abertura das galerias do metropolitano — para lá de S. Vicente de Fora. o Campo de Santa Clara ficou esquecido. É verdadeiramente o Campo do tempo esquecido. S. Vicente de Fora cujo nome lhe adveio de estar fora da cerca moura da cidade e fora da jurisdição do Arcebispo assinala o limite dum campo e duma feira que estão fora do tempo : o Campo de Santa Clara, a Feira da Ladra. Atravessamos o Largo de S. Vicente. Deixamos á direita a mole seiscentista, mandada construir por El-Rei D. Filipe I sobre o templo que o antepassado Afonso Henriques deixara a assinalar o cemitério dos cruzados alemães seus aliados na conquista de Lisboa. À esquerda, o muralhão branco coroado pelas casas nobres dos Teles. Avançamos pelo boqueirão entre a parede lateral da Igreja e o muro de suporte da antiga cerca do mosteiro. Cruzamos o Arco Grande, a unir por sobre a rua o edifício da igreja e o desafogo dos campos seus pertencentes e logo a vista se espraia no largo terreiro inclinado, com o casario lá do fundo a deixar ver uma nesga azul do Tejo, em plena curvatura do rio, fronteira às larguezas do Mar da Palha. Estamos no Campo de Santa Clara. Dum lado, à esquerda de quem desce, uma correnteza de prédios nobres. testemunhas caladas de grandezas desfeitas: os palácios dos Viscondes de Barbacena, dos Sinel de Cardes, dos Marqueses de Lavradio. Ao fundo, rodeada de casinhas antigas a, velha Fábrica de Armas, no lugar onde fora, desde os fins do século XIII até ao terramoto de 1755, Convento das Freiras de Santa Clara. À direita, o muro do pátio de S. Vicente, onde se recolhem, desde tá poucos anos, em barracas, as mercadorias da Feira da Ladra; o Palácio los Condes de Rezende, Almirantes do Reino; e ao dobrar urna esquina surpreende-nos o velho, enorme edifício da Igreja de Santa Engrácia, cujas obras nunca terão fim. Ao descermos o Campo de Santa Clara encontramos, primeiro, uma placa arborizada a entestar com o mercado construído há 80 anos pelo mau gosto da época e mantido pela inércia subsequente; depois do mercado, um pequeno jardim sustentado em paredão na parte sobranceira ao terreno arborizado, defronte do Hospital da Marinha, onde foi outrora lugar da forca, Em dias que não sejam de feira, o Campo de Santa Clara é um lugar romântico, refúgio em rampa sobre o cais e sobre o Tejo, as costas voltadas à cidade que se transforma. Foi nos princípios do século passado lugar de passeio para a nobreza legitimista que habitava o sítio. Não seria preciso esforço grande de imaginação para se lobrigar a casaca do Conde de Rezende, já muito doente, a descer duma sege, ou para su-preender o vulto do Padre José Agostinho de Macedo, quando se acoitava em casa dos Lavradios, fugido às justiças do Convento da Graça onde estava a cumprir pena de prisão. Nos dias de feira a célebre Feira da Ladra enchem-se passeios e placas de quantos objectos velhos e novos seja possível imaginar. Enche-se a rua de gente que sobe, de gente que desce, de gente que pára defronte dos lugares de venda — com uns vagares de pasmaceira, na descontraída calma de quem está longe do que se passa no resto da cidade : a multidão febril que se acotovela na Baixa, a pressa dos automóveis, os eléctricos e autocarros apinhados de gente, todo um correr absurdo a que só as luvas brancas dos sinaleiros dão um pouco de disciplina. Quem veja agora a Feira e a tenha visto há quarenta anos, não repara em diferenças essenciais. Menos candeeiros de petróleo à venda — aqueles enormes candeeiros de suspensão, com a sombreira de loiça branca!— substituídos agora pelas diferentes peças de instalações eléctricas. Mas a mesma gente. Este homem que está aqui a mostrar-me os restos duma durindana, não será o mesmo que eu vi discutir com o Júlio Mardel—há mais de quarenta anos... — o preço duma gravura antiga? Na Feira da Ladra vende-se tudo. logo à entrada, passante o Arco, os vendedores ambulantes estendem-nos tabuleiros de bolos, bilhetes da lotaria, cabides de madeira. Sentados em bancos baixos, cegos tocam harmónios. Ao lado velhas que apregoam tremoços, amendoins. pevides e alfarroba. Principiam os estendais. Objectos usados, de latão — ou novos com aspectos de usados, para engano de compradores menos entendidos. Artefactos de madeira. Armas de todos os feitios e de todas as origens, desde lanças gentílicas a chanfalhos de polícia. Bugigangas novas, entre cintos de plástico, porta moedas e canivetes. Livros, quadros. estampas, campainhas, máquinas de escrever, frascos vazios, restos de todos os móveis e de todos os objectos, coisas que parecem completa mente inúteis e para as quais há sempre — com certeza!- pelo menos, quem pergunte o preço. Para que diabo serve urna luva desirmanada? Agora são ferramentas, de todos os tamanhos e de todos os ofícios. Um operário velho estende a mão com a chave de parafusos que deseja e estende o beiço inferior em jeito de interrogação. O comerciante arqueia o sobrolho com o ar importante de quem esteja a vender uma herdade: São seis mil reis. Nem no contar do dinheiro o tempo é o mesmo. O escudo há-de passar e os mil-reis continuarão na Feira da Ladra. Agora uma voz vibrante de mulher: São trinta, mil reis cada casaco! Estou a acabar! "
Texto de Barradas de Oliveira Fotografias de A Peres Rodrigues
Revista Panorama,1958
4 comentários:
Muito bom e, em alguns pormenores, até parece que o tempo não passou por Santa Clara. Curiosamente, também hoje li, com interesse, um texto desta década, mas esse sobre um microcosmos lisboeta (que fez parte do roteiro de Pessoa), hoje transformado em agência bancária, se a memória não me falha.
Gosto muito destas crónicas sobre Lisboa.
Ver o mosteiro com ar habitado engana-me e penso tratar-se de arquitectura italiana meridional, tão documentada nos filmes de Fellini.
Bom texto. Obrigado!
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