uma historia para o dia 27 de maio, escrita em 2003... relê-la aquece-me o coração...
vinha eu no outro dia, avenida da liberdade abaixo, a caminho do rossio, quando, qual não foi o meu espanto, dei de caras com a minha tia suzete. a tia suzete tem quase 80 anos e quando lhe perguntei o que andava a fazer por aqelas bandas ela respondeu-me: "olha filha, vou ali beber uma ginja!".
"so a tia suzete, mesmo", pensei eu. e comecei a lembrar-me de quando era pequena. a tia suzete sempre foi uma mulher muito forte, nos dois sentidos, fisica e espiritualmente, é daquelas mulheres à moda antiga, cantava fados aos fins-de-semana nos clubes de campolide. pois, quando eu era pequena, a minha mãe, por vezes, deixava-me em casa dela, mas eu fazia sempre um berreiro, não sei bem porquê, até gostava muito dela, sobretudo quando ela me dizia "toma la 100 mérreis, filha (entenda-se, cem mil reis) para ires comprar um raja" - e sempre que a vejo, lembro-me desta frase. porque é que ja não dizemos cem mil reis parece-me obvio, mas raja... porque raio deixamos de dizer raja? quando é que ficou decidido que começariamos a dizer gelado? e com este encontro com a tia suzete comecei a lembrar-me de outras palavras que cairam em desuso. o resultado foi uma enxurrada de frases e palavras que me lembro de ouvir na infância e que, com o passar o tempo, ficaram esquecidas.
na verdade, o que eu gostava mesmo, era de ir para casa da avo maria que me incutia algumas responsabilidades, como a de eu ir à padaria da mercedes; dizia-me muitas vezes "olha filha, leva 50 mérreis para ires ao pão, guarda-os na algibeira, fica atenta à demasia, podes fcar com o que sobejar para comprares um caramelo" - e a mercedes perguntava-me "o que é que quer esta freguesa?" e eu sentia-me crescida. mas a avo maria, no meio de tanta bondade, também tinha crises de furia e, às vezes (quase nenhumas), também se zangava e dizia-me "sai dai, não te empoleires! olha que das uma queda e ainda levas uma galheta por cima". em casa da minha avo, onde passei muito tempo, até aos sete anos, as coisas tinham outros nomes: a televisão era o aparelho, o radio era a telefonia, às fotografias chamavamos retratos e aos anuncios reclames. os meus pais, quando chegavam ao fim da tarde, perguntavam-me se tinha feito os trabalhos da escola e a minha avo, que estava sempre do meu lado, dizia "deixa a miuda", ao que o meu pai respondia "se isto agora é assim quando fores grande não tens o canudo".
gostava tanto desses dias em casa da avo maria, ela dedicava-me todo o seu tempo. de manhã levava-me à escola na rua das trinas, depois ia buscar-me para o almoço, às vezes fazia-me açorda, era a minha comida preferida, e gritava la do fundo da cozinha: "queres primeiro a sopa ou o conduto?" e da parte da tarde, deixava de ter tempo para ela, porque eu queria fazer tudo... e agora penso, como é que uma pessoa de 7 anos e outra de 55 podem ter tanta coisa para conversar 12 horas por dia? tinha muita paciência, ela... às vezes punha-me em cima do sofa aos pulos, naquela altura chamavamos-lhe maple e ela, da sua maquina de costura gritava "olha que isso ainda vai pr'o galheiro, arre!". nos dias de sol no inverno, ela vestia-me o kispo, apanhavamos a carreira 28 e la iamos as duas para o jardim da estrela, ao fim da tarde voltavamos para casa e ela dizia-me "senta-te ai, que a avo traz-te uma bucha" e la ficava eu a ver os bonecos animados, como ela lhes chamava... e aquele conforto para mim era tudo.
e hoje em dia, ja ninguem passa a infância com os avos, não ha tempo para passar tardes à janela, ja não se salta à corda nem ao elastico, ja não se joga aos berlindes, ao pião ou ao iô iô e muito menos nos lembramos destas palavras. eu não consigo lembrar-me quando deixei de as utilizar, nem porquê (muito possivelmente porque mudei de escola e deixei de ir para casa da avo maria). e la fui eu, perdida nestes pensamentos, até à praça do comércio, a pensar se sera este o verdadeiro sentimento português, o da saudade. então, dei meia volta, e fui à espinheira beber uma ginja.
vinha eu no outro dia, avenida da liberdade abaixo, a caminho do rossio, quando, qual não foi o meu espanto, dei de caras com a minha tia suzete. a tia suzete tem quase 80 anos e quando lhe perguntei o que andava a fazer por aqelas bandas ela respondeu-me: "olha filha, vou ali beber uma ginja!".
"so a tia suzete, mesmo", pensei eu. e comecei a lembrar-me de quando era pequena. a tia suzete sempre foi uma mulher muito forte, nos dois sentidos, fisica e espiritualmente, é daquelas mulheres à moda antiga, cantava fados aos fins-de-semana nos clubes de campolide. pois, quando eu era pequena, a minha mãe, por vezes, deixava-me em casa dela, mas eu fazia sempre um berreiro, não sei bem porquê, até gostava muito dela, sobretudo quando ela me dizia "toma la 100 mérreis, filha (entenda-se, cem mil reis) para ires comprar um raja" - e sempre que a vejo, lembro-me desta frase. porque é que ja não dizemos cem mil reis parece-me obvio, mas raja... porque raio deixamos de dizer raja? quando é que ficou decidido que começariamos a dizer gelado? e com este encontro com a tia suzete comecei a lembrar-me de outras palavras que cairam em desuso. o resultado foi uma enxurrada de frases e palavras que me lembro de ouvir na infância e que, com o passar o tempo, ficaram esquecidas.
na verdade, o que eu gostava mesmo, era de ir para casa da avo maria que me incutia algumas responsabilidades, como a de eu ir à padaria da mercedes; dizia-me muitas vezes "olha filha, leva 50 mérreis para ires ao pão, guarda-os na algibeira, fica atenta à demasia, podes fcar com o que sobejar para comprares um caramelo" - e a mercedes perguntava-me "o que é que quer esta freguesa?" e eu sentia-me crescida. mas a avo maria, no meio de tanta bondade, também tinha crises de furia e, às vezes (quase nenhumas), também se zangava e dizia-me "sai dai, não te empoleires! olha que das uma queda e ainda levas uma galheta por cima". em casa da minha avo, onde passei muito tempo, até aos sete anos, as coisas tinham outros nomes: a televisão era o aparelho, o radio era a telefonia, às fotografias chamavamos retratos e aos anuncios reclames. os meus pais, quando chegavam ao fim da tarde, perguntavam-me se tinha feito os trabalhos da escola e a minha avo, que estava sempre do meu lado, dizia "deixa a miuda", ao que o meu pai respondia "se isto agora é assim quando fores grande não tens o canudo".
gostava tanto desses dias em casa da avo maria, ela dedicava-me todo o seu tempo. de manhã levava-me à escola na rua das trinas, depois ia buscar-me para o almoço, às vezes fazia-me açorda, era a minha comida preferida, e gritava la do fundo da cozinha: "queres primeiro a sopa ou o conduto?" e da parte da tarde, deixava de ter tempo para ela, porque eu queria fazer tudo... e agora penso, como é que uma pessoa de 7 anos e outra de 55 podem ter tanta coisa para conversar 12 horas por dia? tinha muita paciência, ela... às vezes punha-me em cima do sofa aos pulos, naquela altura chamavamos-lhe maple e ela, da sua maquina de costura gritava "olha que isso ainda vai pr'o galheiro, arre!". nos dias de sol no inverno, ela vestia-me o kispo, apanhavamos a carreira 28 e la iamos as duas para o jardim da estrela, ao fim da tarde voltavamos para casa e ela dizia-me "senta-te ai, que a avo traz-te uma bucha" e la ficava eu a ver os bonecos animados, como ela lhes chamava... e aquele conforto para mim era tudo.
e hoje em dia, ja ninguem passa a infância com os avos, não ha tempo para passar tardes à janela, ja não se salta à corda nem ao elastico, ja não se joga aos berlindes, ao pião ou ao iô iô e muito menos nos lembramos destas palavras. eu não consigo lembrar-me quando deixei de as utilizar, nem porquê (muito possivelmente porque mudei de escola e deixei de ir para casa da avo maria). e la fui eu, perdida nestes pensamentos, até à praça do comércio, a pensar se sera este o verdadeiro sentimento português, o da saudade. então, dei meia volta, e fui à espinheira beber uma ginja.