15 de junho de 2009

Poemas de laranja amarga

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Metem poemas debaixo dos nossos pés. Com a discrição de quem não sabe escrever e só fala quando tem coisas importantes a dizer. Com a humildade de quem espera não ser entendido, com a tristeza de quem muito menos pensa vir a ser apreciado.
Tecem, pois, com as suas pedrinhas, que partem na mão com a delicadeza de quem liberta uma noz da casca, tapetes que ninguém nos pode puxar. Deixam-nos, belo, um chão sólido que podemos pisar com firmeza, sem receio de alçapões ou outras falsidades. E depois, cinzentos de cotim, ignorados e silenciosos, partem sem um olhar para o que deles ali deixaram.
Normalmente, só os avós os entendem. Seguram, aos domingos, as mãos dos netos, e apontam-lhes o chão que estes homens nos vão deixando, mostrando e explicando cada coordenada destes mapas desprezados da geografia citadina.
E devagar, com muita paciência, como aquela que só os avós sabem ter para os netos, mostram-lhes a rima do poema, a sua métrica, escrito à mão, pedra a pedra, a preto e branco, com desenhos e riscos que nos falam, nos versos certos de amor, flor, barco, arco, corvo, curva, cálice, verdade.
Certamente que todos os que me lêem já há muito que perceberam que vos falo dos calceteiros de Lisboa, das nossas vilas e cidades, poetas ignorados das nossas pedras lascadas, cinzentos e calados, sem que saibamos de onde vêm ao certo, para onde vão realmente, e de que vivem, quando cada vez menos nos metem poemas debaixo dos nossos pés.
No outro dia, quieto e com falsidade aparentando indiferença, ouvi dois a falarem entre si. Escreviam com as pedras que iam escolhendo e juntando, na sua gloriosa caligrafia pesada de calcário, palavras que não sabem dizer por letras.
- Manel, achas que os advogados sabem todos ler?
- Ora, hão-de ser como nós. Uns sabem, outros não.
Deixei-os a escreverem, por pedras, amor, flor, arco, barco, corvo, curva, cálice, verdade.
Já vinha longe e, palavra de honra, senti de repente o cheiro a laranja amarga.

Joaquim Letria, “Laranja Amarga” in Histórias Para Ler e Deitar Fora (excerto)

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