31 de agosto de 2005

Um pouco de cóltura

A vida não é só cerveja, futebol e ena pá 2000. Este texto é dedicado à Marquesa da Broa.

"Acho muito razoável a crença céltica de que as almas daqueles que perdemos estão cativas em algum ser inferior, num animal, num vegetal, numa coisa inanimada, efectivamente perdidas para nós até ao dia, que para muitos não chega nunca, em que acontece passarmos junto da árvore, ou entrar na posse do objecto que é sua prisão. Então elas estremecem, chamam por nós e, mal as reconhecemos, quebra-se o encanto. Libertadas para nós, venceram a morte e tornam a viver connosco.
O mesmo acontece com o nosso passado. É trabalho baldado procurarmos evocá-lo, todos os esforços da nossa inteligência são inúteis. Ele está escondido, fora do seu domínio e do seu alcance, em algum objecto material (na sensação que esse objecto material nos daria) de que não suspeitamos. Depende do acaso encontrarmos esse objecto antes de morrermos, ou não o encontrarmos.
Havia já muitos anos que, de Combray, não existia para mim tudo o que não fosse o teatro e o drama do meu deitar, quando, num dia de inverno, ao regressar a casa, a minha mãe, vendo-me com frio, me propôs que, contra o meu hábito, tomasse um chá. Comecei por recusar e, não sei porquê, mudei de opinião. Ela mandou buscar um daqueles bolos pequenos e roliços chamados «madalenas», que parecem ter sido moldados na concha estriada de uma vieira. E não tardou que, maquinalmente, abatido pelo dia taciturno e pela perspectiva de um triste dia seguinte, levei à boca uma colher de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena. Mas no preciso instante em que o gole com migalhas de bolo misturadas me tocou no céu da boca, estremeci, atento ao que de extraordinário estava a passar-se em mim. Fora invadido por um prazer delicioso, um prazer isolado, sem a noção da sua causa. Tornara-me imediatamente indiferentes as vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, do mesmo modo que o amor opera, enchendo-me de uma essência preciosa: ou, antes, tal essência não estava em mim, era eu mesmo. Deixara de me sentir medíocre, contingente, mortal. Donde poderia ter vindo aquela poderosa alegria? Sentia-a ligada ao gosto do chá e do bolo, mas ultrapassava-o infinitamente, não devia ser da mesma natureza. Donde vinha? Que significava? Onde agarrá-la? Bebo um segundo gole, no qual nada encontro a mais que no primeiro, e um terceiro que me traz um pouco menos que o segundo. É tempo de parar, a virtude da bebida parece estar a diminuir. É evidente que a verdade que procuro não está nela, mas em mim. Ela despertou-a, mas não a conhece, e não pode mais que repetir indefinidamente, cada vez com menos força, aquele mesmo testemunho que não sei interpretar e que, pelo menos, quero poder tornar a pedir-lhe e reencontrar intacto, à minha disposição, daqui a pouco, para um decisivo esclarecimento. Poiso a xícara e volto-me para o meu espírito. A ele cabe encontrar a verdade. Mas como? Grave incerteza, sempre que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo; quando ele, o explorador, é todo ele o país escuro que tem a explorar e onde lhe não servirá de nada toda a sua bagagem. Explorar? Não só: criar. Está diante de algo que não é ainda e que só ele pode tornar real e depois fazer entrar na sua luz.
E recomeço a perguntar a mim mesmo qual poderia ser esse estado desconhecido, que não trazia consigo qualquer prova lógica, mas sim a evidência da sua felicidade, da sua realidade, diante da qual as outras se esfumavam. Pretendo tentar fazê-lo reaparecer. Retrocedo pelo pensamento ao momento em que tomei a primeira colher de chá. Reencontro o mesmo estado, sem uma clareza nova. Peço ao meu espírito mais um esforço, que me traga mais uma vez a sensação que se escapa. E para que nada quebre o impulso com que vai tentar reagarrá-la, afasto todos os obstáculos, todas as ideias alheias, protejo os meus ouvidos e a minha atenção contra os ruídos do quarto contíguo. Mas, sentindo que o meu espírito se fatiga sem o conseguir, forço-o, pelo contrário, a tomar essa distracção que eu lhe recusava, a pensar noutra coisa, a restabelecer-se antes de uma suprema tentativa. Depois, pela segunda vez, faço o vazio à frente dele, torno a pôr diante dele o sabor ainda recente daquele primeiro gole, e sinto estremecer em mim qualquer coisa que se desloca, que queria erguer-se, qualquer coisa que terão desancorado, a uma grande profundidade; não sei que é, mas sobe lentamente; sinto a resistência e oiço o rumor das distâncias atravessadas.
Não há dúvidas de que o que assim palpita no fundo de mim deve ser a imagem, a recordação visual, que, ligada a este sabor, tenta segui-lo até mim. Mas debate-se muito longe, muito confusamente; mal posso discernir o reflexo neutro onde se confunde o inapreensível turbilhão das cores agitadas; mas não posso distinguir a forma, pedir-lhe, como único intérprete possível, que me traduza o testemunho do seu contemporâneo, do seu inseparável companheiro, o sabor, pedir-lhe que me diga de que especial circunstância, de que época do passado se trata.
Será que irá atingir a superfície da minha clara consciência essa recordação, o instante antigo que a atracção de um instante idêntico veio de tão longe solicitar, comover, erguer no mais fundo de mim? Não sei. Agora já não sei nada, parou, talvez tenha descido de novo; quem sabe se alguma vez tornará a subir da sua noite? Dez vezes terei de recomeçar, de me debruçar sobre ele. E de todas as vezes a cobardia que nos afasta de todas as tarefas difíceis, de todas as obras importantes, me aconselhou a pôr aquilo de lado, a beber o meu chá pensando simplesmente nos meus aborrecimentos de hoje, nos meus desejos de amanhã, que se deixam ruminar sem custo.
E de repente a recordação surgiu-me. Aquele gosto era o do pedacinho de madalena que em Combray, ao domingo de manhã (porque nesse dia não saía antes da hora da missa), a minha tia Léonie, quando lhe ia dar os bons-dias ao quarto, me oferecia, depois de o ter ensopado na sua infusão de chá ou de tília. A visão da minúscula madalena nada me fizera lembrar até a ter provado; talvez porque, tendo-as visto muitas vezes depois disso, sem as comer, nas prateleiras das pastelarias, a sua imagem deixara aqueles dias de Combray para se ligar a outras mais recentes; talvez porque dessas recordações abandonadas durante tanto tempo nada sobrevivia fora da memória, tudo se havia desagregado: as formas - também a da conchinha de pastelaria, tão gordurosamente sensual no seu pregueado severo e devoto - tinham sido abolidas, ou, ensonadas, haviam perdido a força de expansão que lhes permitia chegar à consciência. Mas, quando nada subsiste de um passado antigo, após a morte dos seres, após a destruição das coisas, apenas o cheiro e o sabor, mais frágeis mas mais vivazes, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, permanecem ainda por muito tempo, como almas, a fazer-se lembrados, à espera sobre a ruína de tudo o resto, a carregar sem vacilações sobre a sua gotinha quase impalpável o edifício imenso da memória.
E mal reconheci o gosto do pedaço de madalena ensopado na tília que a minha tia me dava (se bem que então ainda não soubesse e que tivesse que deixar para muito mais tarde a descoberta de porque é que aquela recordação me fazia tão feliz), logo a velha casa cinzenta sobre a rua, onde ficava o seu quarto, veio, como um cenário de teatro, juntar-se ao pequeno pavilhão que dava para o jardim, que havia sido construído para os meus pais nas traseiras (aquela superfície truncada, a única que até então tinha tornado a ver); e com a casa, a cidade, desde manhã até à noite e com toda a espécie de tempo, a praça para onde me mandavam antes do almoço, as ruas onde ia fazer compras, os caminhos que se tomavam quando estava bom tempo. E, tal como naquele jogo em que os Japoneses se divertem a molhar numa tigela de porcelana cheia de água pedacinhos de papel até então indistintos e que, logo depois de ensopados, se estendem, torcem, tomam cor, se diferenciam, se transformam em flores, em casas, em personagens consistentes e reconhecíveis, assim também, agora, todas as flores do nosso jardim e as do parque do senhor Swann, e os nenúfares do Vivonne, e a boa gente da aldeia, e as suas casinhas, e a igreja, e Combray inteira mais os arredores, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, da minha xícara de chá. "

Marcel Proust - Em Busca Do Tempo Perdido 1 - Do Lado De Swann

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