6 de junho de 2009

Doutores e engenheiros

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Sou do tempo em que se era doutor por cinco tostões. Ou seja: quando os bancos não tinham ainda acabado com os grandes cafés de Lisboa e estes tinham altifalantes para chamarem os seus clientes ao telefone, ouvia-se frequentemente chamar o senhor-doutor-fulano-de-tal. E este levantava-se e, perante a admiração respeitosa e quase geral dos circunstantes, ia atender a chamada ao balcão do café, que por muitos era assim transformado numa espécie de escritório. […]
Hoje, em Lisboa, já não se faz tanto aquela vida de café. E deixou de ser costume chamar-se assim as pessoas ao telefone. Mas nem por isso diminuiu o número de doutorados. […]
Vem tudo isto a propósito de eu ter encontrado ontem e ficado assim a conhecer mais um engenheiro.
Foi na rua, em Lisboa, o jovem tinha bom aspecto, a roupa denotava boa qualidade, ainda que visivelmente usada e um pouco desalinhada, e dirigiu-se-me com firmeza e grande resolução:
- O senhor desculpe. Pode pensar o que entender e reagir conforme os seus princípios ou os seus sentimentos, que eu compreendo perfeitamente, qualquer que venha a ser a sua decisão. Sou engenheiro, acabei o curso do Técnico há um ano e ainda não consegui arranjar emprego. […] Pode e quer o senhor contribuir com alguma coisa para uma refeição ligeira que eu possa tomar?
Não sei nem me interessa se a história que este rapaz me contou é verdadeira. Engenheiro ou não, quem fala assim não é gago e o recorte do seu português e a fluência do seu discurso eram suficientemente bons para que esta atitude não fosse uma violação para a sua própria dignidade.
Dei-lhe quinhentos escudos porque hoje não é fácil almoçar por muito menos se se deseja uma refeição quente. E fiquei a pensar desde então em coisas tão estranhas como estatuto social e inflação. É que apesar de todos os pernósticos que somos obrigados a aturar temos de reconhecer uma grande diferença entre o tempo em que se podia ser doutor por cinco tostões e os dias de hoje, em que se dá quinhentos escudos a um engenheiro na mendicidade.
Joaquim Letria, “De doutor por cinco tostões a quinhentos escudos para um engenheiro na mendicidade” in Histórias Para Ler e Deitar Fora (transcrito com supressões)

7 comentários:

Anónimo disse...

Do tempo dos escudos até agora... mantém-se a actualidade dos factos!

teresa disse...

É verdade, Elsa. Pensei exactamente no mesmo ao transcrever o texto. Bom fim-de-semana:)

Assunção disse...

Só percebi que a história era "antiga" quando são referidos os escudos... é triste pensar que hoje em dia a situação se mantém, isto para não dizer que piorou...

teresa disse...

É verdade, São.
Depois de ter lido o teu comentário e como tinha o livro mesmo aqui ao lado, acabei de verificar que foi publicado em 1987,já lá vão mais de 20 anos.

gin-tonic disse...

Joaquim Letria, um estupendo repórter, um excelente cronista produto dessa escola do "Diário de Lisboa" dos finais dos anos 60, quando ainda havia jornais e jornalistas. DEpois meteu-se em assessorias políticas, mas isso já é uma outra história... e só ele saberá o porquê. O resto é que é importante...
Da história de nos cafés existir instalação sonora para chamar os clientes ao telefone, ocorre-lhe o "British-Bar", onde passou dias e dias e dias que correram, o Fernando chegava ao ouvido do cliente e dizia-lhe baixinho: "tem uma chamada para si1"
"For the Good Times", como canta o Kris Kristofferson.

teresa disse...

Para mim foi surpresa (quando há muito li esta crónica de J.Letria que hoje revi), pois não recordo o equipamento sonoro para chamar os "dótores" ao telefone:)

rauluis disse...

Frequentei o Café Imperio nos anos de 50 e 60 e posso afirmar que de fato existia instalaçâo sonora para chamar os clientes ao telefone
e vi muitos desses pseudo doutores
se levantarem e irem todos inchados
atender o telefonema feito em combinaçâo com algum amigo ou familiar. Sempre foi muito importante ser doutor em Portugal.