15 de dezembro de 2005

De rosas e de bananas

Este post devia versar sobre Noel Rosa, que foi o que a Teresa me sugeriu que escrevesse. Porque Noel foi um sambista de letras muito boas; muito boas mesmo. Eu suponho que elas sobrevivam como poesia, mas são, acreditem-me, indissociáveis da música muito rica, muito sofisticada que ele fazia. Era de Vila Isabel, bairro do Rio de Janeiro que graças a ele ganhou fama de Meca dos sambistas. Fazia música por dinheiro: vendia suas composições pelos mil-réis quaisquer que pudesse apurar, e vivia muito bem disso. Tinha o queixo atrofiado, vivia com o violão a tiracolo, era imensamente popular e tido como vagabundo pelos brasileiros respeitáveis de então. Muito coerentemente: suas letras falavam de malandros e seus expedientes, emprestando à vida torta um glamour de que ainda goza nestas terras (e que depois infindáveis outros trataram de ampliar). Hoje anda meio esquecido, e injustamente; sua letra mais célebre, a de "Conversa de Botequim", é como se lê embaixo:

Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada
Um pão bem quente com manteiga à beça
Um guardanapo e um copo d'água bem gelada

Fecha a porta da direita com muito cuidado
Que não estou disposto a ficar exposto ao sol
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol

Se você ficar limpando a mesa
Não me levanto nem pago a despesa
Vá pedir ao seu patrão uma caneta, um tinteiro
Um envelope e um cartão

Não se esqueça de me dar palitos
E um cigarro pra espantar mosquitos
Vá dizer ao charuteiro que me empreste umas revistas
Um isqueiro e um cinzeiro

Telefone ao menos uma vez para 34-4333
E ordene ao Seu Osório que me mande um guarda-chuva
Aqui pro nosso escritório

Seu garçom, me empreste algum dinheiro
Que eu deixei o meu com o bicheiro
Vá dizer ao seu gerente
Que pendure essa despesa no cabide ali em frente

"Média" é como se chamava o café com leite. O "bicheiro" era o bookmaker do jogo do bicho, uma loteria clandestina ainda hoje muito popular no Brasil, que leva tempo a explicar. E "pendurar" a despesa é fazer fiado, coisa cada vez mais em desuso por aqui.

* * *

Já vêem que sou um cidadão confuso. Eu disse que o post devia falar disso, e falou mesmo, mas eu não queria; porque a música, como eu disse, é fundamental, e a letra, engraçadinha, ganha ainda mais graça com a música incomparável. Eu na verdade queria era falar de outros dois sujeitos: Juó Bananére e Furnandes Albaralhão. Bem, do Albaralhão falarei outro dia, para não esticar demais isto aqui. Mas do Bananére falo já.

Em primeiro lugar, os amigos de Portugal têm de saber que São Paulo, onde nasci e ainda vivo, nunca contou com uma colônia portuguesa tão forte e numerosa quanto o Rio de Janeiro; sim, portugueses os havia e os há, mas quem imigrou em massa para cá foram os italianos - entre eles a não tão nobre casa dos Tosetto. Ora, os italianos tinham uma maneira muito curiosa de falar o português: nunca usavam o "s" para fazer plural, porque em italiano ele se faz em "e" ou em "i". Daí veio nossa mania de falar "as pizza", "os pastel", "as coisa tudo". Também não eram amigos de certos sons marcados de "l", amavam os rotacismos e odiavam os ditongos - daí nosso sotaque usar "borso" em vez de "bolso", "barde" em vez de "balde", "parmêrista" em vez de "palmeirista" ou "palmeirense" (torcedores do Palmeiras, meu time!, meu time!).

Bem. Foi então que um sujeito muito gozador, de nome Alexandre Marcondes Machado, começou, a inícios do século passado, a publicar crônicas e poemetos imitando a maneira dos italianos se expressarem. Começou a assinar-se Juó Bananére, que é João Bananeira, e escreveu delícias paródicas como esta, por exemplo, que satiriza Olavo Bilac:

Uvi Strella

Che scuitá strella, né meia strella!
Vucê stá maluco! e io ti diró intanto,
Chi p'ra iscuitalas moltas veiz livanto,
I vô dá una spiada na gianella.

I passo as notte acunversáno c'oella,
Inguanto che as otra lá d'un canto
Stó mi spiano. I o sol come un briglianto
Nasce. Oglio p'ru çeu: - Cadê strella?!

Direis intó: - Ó migno inlustre amigo!
O chi é chi as strellas ti dizia
Quano illas viéro acunversá contigo?

E io ti diró: - Studi p'ra intedela,
Pois só chi giá studô Astrolomia
É capaiz de intendê ista strella.

Especialmente delicioso esse "astrolomia". É curioso dizer, mas era precisamente essa a língua que minha família falava. Minha Tia Virgínia, que ia à praia de casaco de lã e meias finas de nylon, expressava-se exatamente assim; e se um dia eu visitar vocês aí em Portugal, não percam a chance de me forçar a imitar essa maneira de falar. Hão de rir muito. (é Também a língua dos sambas do Adoniran Barbosa.) Tem mais Bananére clicando aqui. E o Bilac original, o sacaneado, é este:

- Ora (direis) ouvir estrelas! Certo,
Perdeste o senso! E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouví-las, muita vez desperto
E abro a janela, pálido de espanto.

E conversamos longo tempo, enquanto
A Via Láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir o sol, saudoso e em pranto,
Ainda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: - Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem quando estão contigo?

E eu vos direi: - Amai para entendê-las,
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas!

E vejo que me estendi muito mais do que pretendia...

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