17 de dezembro de 2005

A campanha dos afectos

Mais do que programas, são os afectos que marcam esta campanha presidencial. Existem, naturalmente, alinhamentos mais para um lado ou para o outro, mas esses alinhamentos não irão definir o resultado final. Senão vejamos:

1.
Cavaco Silva tem uma enorme probabilidade de ganhar, sim, mas não porque é o melhor, o mais competente, ou qualquer coisa do género. É porque (i) já perdeu uma vez e nós, portugueses, temos uma marcada tendência para simpatizar com derrotados: “Vá la, vá lá, demos-te com os pés da outra vez, coitadinho, portanto agora podes dar a tua voltinha no carrocel”; (ii) já foi primeiro ministro e nós, portugueses, temos uma razoável tendência para replantar antigos primeiros-ministros como presidentes da República; (iii) por último, mas não despiciendo, porque a generalidade da população se encontra num nível civilizacional que favorece as figuras tutelares – e Cavaco Silva, com a sua proverbial figura ascética, proba e rigorosa, ainda por cima reminiscente do pai mais tutelar das gerações com mais de cinquenta anos, surge no imaginário popular talhado na perfeição para o papel.

2.
Mário Soares não vai ganhar porque (i) na sequência do raciocínio apresentado em cima, como já lá esteve deve dar o lugar ao outro que também foi primeiro ministro mas ainda não foi presidente – “tem de haver oportunidades para todos!”; (ii) jurou a pés juntos que nunca mais se metia noutra quando fez oitenta anos, mas agora decidiu aparecer outra vez. Só que a malta até tem memória, e estas coisas caem mal. (Já agora, alguém misericordioso que lhe diga para retirar dos outdoors a campanha MP3. A ideia nem é má, mas o cartaz é sinistro!).

3.
Manuel Alegre não deverá ganhar porque assusta muita gente. Não, não me refiro aos aparatchiks do PS, histericamente fazendo contra-campanha através de inuendos e tiradas em que nunca mencionam o nome do seu camarada de partido, em consonância com os princípios mais rascas do marketing político. Falo da população em geral. Ter vontade e ideias próprias assusta e compromete. Esta é uma candidatura contra a corrente, de quem não se submete a ditames partidários e acha que se pode ser, simultaneamente, várias coisas, sem por isso trair nenhuma delas. Não que não haja gente corajosa e lúcida nas restantes candidaturas; nesta é que não há lugar a tibiezas e não haverá, quase por definição, espaço para as corjas de penduras que se agarram à política como insectos.

E voltamos, claro, aos afectos.
Cavaco Silva é manifestamente incompleto, um especialista a concorrer a um lugar de generalista, um erro de casting para a presidência.
Mário Soares, apesar de combater com gosto e denodadamente, desbarata um prestígio até hoje inatacável, ao deixar-se ser usado pelo aparelho do PS para fins que ultrapassam a presidência – a tese de que é um candidato derrotável, abrindo lugar ao presidente que hoje convém ao PS (Cavaco Silva), faz cada vez mais sentido.
Sobra Manuel Alegre, um homem que genuinamente considera ser seu dever cívico avançar, apoiado por aqueles que consideram ser sua obrigação manifestar que há quem não se submeta às conveniências da política pequenina e periférica que por aqui se vai praticando. E, quem sabe, pode ser que o país das caravelas tenha um assomo de lucidez e o milagre aconteça. É possível ser grande. Por vezes querer é quanto basta.

À espada em tuas mãos achada
Teu olhar desce.
«Que farei eu com esta espada?»

Ergueste-a, e fez-se.


O Conde D. Henrique
Mensagem
Fernando Pessoa


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