Eu reli agora.
Depois de ler, achei que cabia publicar aqui e dividir com vocês.
"Patão" Guedes |
Cantar
Godofredo Guedes
Godofredo Guedes |
Se numa noite eu viesse ao clarão do luar
Cantando e aos compassos de uma canção
Te acordar
Talvez com saudade cantasses também
Relembrando aventuras passadas
Ou um passado feliz com alguém
Cantar quase sempre nos faz recordar
Sem querer
Um beijo, um sorriso, ou uma outra ventura qualquer
Cantando aos acordes do meu violão
É que mando depressa ir-se embora saudade que mora no meu coração
Eu e Paulo Ribeiro, no caminho das Geraes. |
Numa das minhas idas a MOC (assim os nativos chamam carinhosamente a cidade de Montes Claros, no extremo Norte de Minas Gerais) , Paulinho Ribeiro me chamou pra ir ao refúgio de Ucho Ribeiro, irmão dele. Chovia a cântaros. Paulinho é dado a isso. Inventar coisas. Quando a gente menos espera, ele inventa. E a invenção é tão instigante que é difícil resistir. Lá fomos nós. Chuva forte e fé na estrada.
No caminho, Paulinho me pergunta se conheço Diamantina. De passagem, respondo. Passei por lá no início da década de oitenta. Mas foi uma passagem curta, eu ia de volta pra casa, São Luis do Maranhão, depois de passar dez anos fora. Então tu não conheces é nada, diz Paulinho. E toca pra Diamantina.
Acende um palheiro que viagem assim não se faz sem fumaça. Passa boi, passa boiada, passa morro, passa estrada e toca conversa besta, conversa de menino, de gente livre de preconceito, de gente doida pela vida.
Essas coisas de ir pra não sei onde sempre me dão um frio na barriga. Mas eu topo por que minha vida é um pouco assim. Lembro que era um sábado e a idéia era passar em Diamantina, rever alguns lugares, experimentar uma cachaça e seguir para a fazenda de Ucho.
Paulinho falava maravilhas do lugar. Um chalé na beira de um rio. Cercado de verde por todos os lados. A Água lambendo a varanda. Uma quietude de fazer gastura. Paz em estado puro.
Diamantina - MG |
Quando chegamos em Diamantina a chuva tinha se transformado em uma garoa insistente. É impossível andar por ali e não lembrar de São Luis. Ruas estreitas, pedra de cantaria, calçadas de um passante só. Sobrados e azulejos com a cara de Portugal. Paramos em um boteco pra comer algo. Meu telefone toca. Era Mara. Conversa com teu filho. Ele não para de chorar, me disse ela. Gelei.
Gabriel Viegas |
Gabriel é um menino lindo. E visceralmente apaixonado pelo Grêmio Footebol Portoalegrense, por influência da mãe. Naquele dia, o Grêmio fazia um jogo definitivo, histórico. Ou ganhava e voltava para a primeira divisão do Campeonato Brasileiro ou amargava mais um ano na Segunda Divisão. O jogo era no Estádio dos Aflitos em Recife. Faltavam onze minutos pra terminar. A pressão era total.
O Grêmio, imortal |
Um estádio inteiro contra o Grêmio. O Náutico já havia perdido um pênalti. O juiz acabara de marcar outro. O Gabriel se desesperou e começou a chorar. Os jogadores do Grêmio foram pra cima do juiz e ele, além de marcar o pênalti, expulsou quatro jogadores do Grêmio. Gabriel se desesperou ainda mais.
Quando ele chegou ao telefone só dizia: Pai, o juiz é ladrão, é ladrão, é ladrão. Meu coração ficou mais aliviado, a tragédia poderia ter sido maior. Passei a falar com calma de pai que precisa acalmar filho. Calma, filho. A vida é assim mesmo. Nem sempre o time da gente ganha, mesmo jogando melhor, blá, blá, blá...
No que estou conversando com ele, vejo uma televisão ligada mostrando aquele jogo. Eu, em Diamantina, Minas Gerais. Gabriel e Mara, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. E o jogo acontecendo em Recife, Pernambuco. O juiz manda cobrar o pênalti. O Gabriel chora. Eu rezo por ele. E por mim. Pra que eu consiga atravessar bem com meu filho a primeira grande frustração da vida dele, a primeira e mais dolorida dor.
O jogador do Náutico corre pra bola. Um silêncio sepulcral ao telefone. Só ouço os soluços de Gabriel. O chute. A bola. O goleiro defende. Uma explosão de vozes. Nessa altura do campeonato, todo o bar onde eu estava prestava atenção em mim e na minha tentativa de acalmar meu filho. Já havia até torcida pelo Grêmio.
Nem deu tempo de comemorar. O goleiro do Grêmio jogou a bola pro Anderson, um pretinho abusado, de trancinhas rastafari no cabelo que ocupava a camisa nove, de centro-avante. Anderson correu, passou por um, passou por dois e foi derrubado. Gabriel xingava o juiz. O Grêmio não perdeu tempo, Patrício cobrou a falta.
Os jogadores do Náutico ainda não entendiam o que tinha acontecido, como tinham perdido aquela oportunidade de marcar o gol. Anderson corre pela linha de fundo e recebe a bola. A defesa desarmada. Passa por um, deixa outro no chão. Diante do goleiro tem calma suficiente para escolher o canto. Chuta. Um chute definitivo, certeiro, gol do grêmio. Meu coração quase salta pela boca. Só de ouvir a alegria do meu filho.
Paulinho dividiu tudo comigo. Repartimos uma cerveja e algumas lágrimas de alegria pela vitória de Gabriel, pela chuva, por Diamantina, pela viagem, pela companhia e seguimos para a fazenda de Ucho.
Já era noite quando entramos em uma estrada de barro. Temi diante da possibilidade de ficarmos atolados. Mas o meu temor era besteira diante da vontade do Paulinho de vencer a estrada. Ele dirigia como quem conhecesse aquele caminho desde pequeno. A estrada, o barro, o medo, a noite, tudo ia passando na mesma velocidade. Chegamos com chuva forte na casa do Ucho.
A varanda da casa de Ucho |
Tudo ali, do jeito que Paulinho havia descrito. Mas havia mais. Havia umas três ou quatro pessoas fazendo comida, bebendo vinho, cantando. Entre eles, um camarada muito magro, de oclinhos redondo, à beira de um teclado, pra quem fui apresentado: Patão, irmão do Beto. Não demorou muito, estávamos cantando as canções de Godofredo Guedes, de Beto Guedes, de Lô Borges e Bituca (que é como a turma chama Milton Nascimento na intimidade) , um clube da esquina improvisado, feito ali, na beira do rio, abafando o barulho da chuva.
De manhã, quando acordei, pude ver melhor a casa de Ucho. Vi que Jacy, mãe deles, já havia passado por aquele lugar e tinha deixado marcas nas paredes. Uma imagem de Santo Antônio, frases de Manoel de Barros escritas entre as janelas. Uma composição perfeita.
Santo Antônio de Jacy |
Manoel de Barros no alto da janela |
Agora, quando Valéria me fala da volta de Patão ao hospital, é impossível não pensar nele e naquele dia. Na viagem de volta da casa de Ucho, em que ficamos juntos e dividimos lembranças dos tempos de rua, ele em MOC e eu em São Luis. Sei que vencer o câncer não é pra qualquer um. É pra poucos e pra especiais.
Enquanto escrevo, duas músicas me ocupam a memória. A que Beto fez para o filho dele, que tem o mesmo nome do meu, Gabriel. E a que está transcrita lá em cima, de Godofredo Guedes, "Cantar". Vale pra lembrar o Patão. Vale pra espantar a saudade. Vale pra celebrar a vida.
P.S. - Publiquei este texto em maio de 2010 no meu blog. Pouco tempo depois, Patão se foi.
5 comentários:
Minas. Não terá a espectacularidade de outros locais do Brasil, mas é o lugar mais bonito do mundo. Uma terra que nos deu Guimarães Rosa e Drummond e Milton. E a Inconfidência, caramba, e as coisas que o Aleijadinho fez. E o feijão tropeiro e a melhor culinária do planeta, acreditem. E aquelas planuras brutais.
Gaita, que saudades. Acho que vou ter de reler o Darcy Ribeiro.
Sugiro "Confissões", um apanhado de ideias em forma de crônicas, um relato de vida, já com a consciência de partida próxima, que considero uma obra última e prima (assim mesmo) de Darcy.
Grande abraço.
Caro, obrigado pela dica. Vou mesmo ler. Abraço.
Não sei se conhece a revista UP, a revista da companhia aérea portuguesa TAP. Tem sempre uma parte dedicada ao Brasil. Um artigo mais pequeno ou um maior, sobre uma cidade ou uma comida. Mas há lá sempre qualquer coisa. Sei que Diamantina foi mencionada antes, numa outra revista que devo ter arrumada algures.
O Maranhão é o tema principal da revista deste mês (viajei ontem, por isso sei) quando li lembrei-me logo de si.
Luisa, muito obrigado pela lembrança. Vou pedir a um amigo que está voltando de Portugal, pela TAP, que me traga um exemplar.
Bom domingo.
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