"Pela vasta janela junto da qual trabalho avista-se o Tejo e um dos seus cais de embarque. Neste dia de radiosa primavera, em que o sol derrama sobre as coisas uma alegria serena, tenho visto passar-se a pouca distância dos meus olhos uma larga série de pequenos dramas. Toda a manhã têm estado a embarcar emigrantes. O cais está completamente invadido por gente pobre, sobraçando pacotes e trouxas, tendo aos pés, em pequenas caixas e em sacos de ramagens, os miseros trapicalhos que constituem seus haveres. Ao longe, o fumo dum grande vapor inglês acena-lhes, chamando-os. Pouco a pouco vão-se atulhando as fragatas e rebocadores, que por fim largam, rio abaixo, a encostar ao transatlântico, De bordo vão-se agitando lenços brancos e barretes. Em terra ficam mulheres chorando, crianças que mal entendem o que se passa e dizem também adeus. E, sobre o Tejo, liso como um espelho, sob a luz cegante de um céu sem nuvens, os que abalam em cata dum sonho, á busca duma vida de felicidade que a Pátria lhes não dá, devem sentir no coração uma angustia torturante, gémea daquela que, encostada ás pedras dos cais, vê afastarem-se os entes queridos roubados pela má fortuna. E todas as segundas feiras é um espectáculo semelhante. Cada grande steamer que entra no Tejo furta-nos umas centenas de portugueses, que vão á aventura, fazer nem sabem o quê, para ganharem o pão que Portugal lhes nega. Quantos voltarão desse sonho para o qual embarcam cheios de tristeza, mas com uma luz de esperança ? Tripulantes da armada da miséria, quantos vencerão nesse combate para o qual apenas levam aprestados os braços nus ? "
André Brun, Sumário de várias crónicas
16. Março 1914.
Fotografia de Joshua Benoliel, Arquivo Municipal de Lisboa
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