19 de dezembro de 2009
A NEVE PRETA
Permitam que ele se desculpe por não conseguir despegar-se da costela neo-realista que arrasta consigo, desde que, em idade quiçá um pouco precoce, leu meia dúzia de livros que, hoje, considera definitivos para a sua formação cultural, e não só.
Sabe que no meio das ruas festivas há outros sons, outros olhares, o olhar do Natal através das janelas dos outros, o saber que a fome também pode ser iluminada pelo Natal, que ao sair de uma loja, carregados de embrulhos com laços coloridos, podemos deparar com um sem-abrigo, com um imigrante de um qualquer país, a estender a mão para uma esmola. Algo completamente desnecessário que apenas serve para estragar o espírito natalício, a cara alegre que cada um, por estes tempos, pensa transportar. Enfim, uma chatice…
Num livro de crónicas de José Saramago “Deste Mundo e do Outro”, publicado pela Editora Arcádia em Janeiro de 1971, vem lá uma crónica que dá pelo nome de “A Neve Preta”.
Não resistiu à tentação de, em parte, a transcrever. O raio da costela neo-realista…
Que o desculpem, disse ele a abrir.
“Estes pequenos filhos dos homens têm andado pelas minhas crónicas. Mas de crianças tenho falado como quem as conhece bem, só porque também por lá passou. E agora pergunto: que são as crianças? Dez mil pedagogos se preparam para me responder. Afasto de antemão as respostas, umas que já conheço, outras que adivinho, e torno a perguntar: que são crianças?
Que seres estranhos são esses que viram para nós os seus rostos frescos, que nos perturbam às vezes com um olhar subitamente profundo e sábio, que são irónicos e gentis, débeis e implacáveis, e sempre tão alheios? Temos pressa de os ver crescer, de os admitir no clã dos adultos sem surpresas. Somos impacientes, nervosos, porque estamos diante de uma espécie desconhecida... Quando passam a ser nossos iguais, falamos-lhes da infância que tiveram (a que recordamos, como observadores do lado de fora) e sentimo-nos quase ofendidos porque eles não gostam de ouvir lembrar uma situação em que já não se reconhecem. São adultos, agora: outra espécie humana, portanto.
Nessa infância está, por exemplo, a história que vou contar e que devo a um desses tais encontros de acaso. E depois de eu a reproduzir aqui, dir-me-ão se não tenho razões para insistir: é pre¬ciso cuidado com as crianças... Não o cuidado comum, que tende a prevenir acidentes, aqueles que aparecem sob esta rubrica nas notícias dos jornais, mas um outro cuidado, mais melindroso e subtil. Eu explico.
Uma professora mandou um dia aos seus alunos que fizessem uma composição plástica sobre o Natal. Não falou assim, claro. Disse uma frase como esta: «Façam um desenho sobre o Natal. Usem lápis de cores, ou aguarelas, ou papel de lustro, o que qui¬serem. E tragam na segunda-feira.» Assim ou não assim, os alunos fizeram o trabalho. Apareceu tudo quanto é costume aparecer nes¬tes casos: o presépio, os Reis Magos, os pastores, S. José, a Virgem e o Menino Jesus. Mal feitos, bem feitos, toscos ou apuradinhos, os desenhos caíram na segunda-feira em cima da secretária da professora. Ali mesmo ela os viu e apreciou. Ia marcando «bom», «mau», «suficiente», enfim, os transes por que todos nós passámos. De repente... Ah, mas é preciso muito cuidado com as crianças! A professora segura um desenho nas mãos, e esse desenho não é melhor nem pior que os outros. Mas ela tem os olhos fixos, está perturbada; o desenho mostra o inevitável presépio, a vaca e o burrinho, e toda a restante figuração. Sobre esta cena sem mistério cai a neve, e esta neve é preta. Porquê?
«Porquê?», pergunta a professora, em voz alta, à criança. O rapazinho não responde. Talvez mais nervosa do que quer mostrar, a professora insiste. Há na sala os cruéis risos e murmúrios de rigor nestas situações. A criança está de pé, muito séria, um pouco trémula. E, por fim, responde: «Fiz a neve preta porque foi nesse Natal que a minha mãe morreu...»
Daqui por um mês chegaremos à Lua. Mas quando e como chegaremos nós ao espírito de uma criança que pinta a neve preta porque a mãe lhe morreu?”
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1 comentário:
O Natal, a partir de uma dada fase da vida, tem a 'propriedade' de despertar em nós - para quem costuma reunir a família alargada na quadra - o sentimento mais aguçado de algumas ausências... e se é difícil para os adultos, mais o será ainda na infância. Quando trabalhei durante 3 anos, não em sala de aula mas a dar apoio a alunos com dificuldades, não tendo a pretensão de interpretar os desenhos que gostavam de me oferecer e que coloquei nas paredes do minúsculo gabinete, fiquei impressionada quando me apercebi de que alguns adolescentes tinham um traço infantil, nunca querendo utilizar os lápis de cor: deixavam casas sem chaminé, sem fumo a sair, paisagens sem o sol desenhado, árvores despidas de folhas, enfim, desenhos sem a marca das coisas bonitas do quotidiano.
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