26 de fevereiro de 2009

Crianças, gatos e Calvin...lembrando Agostinho da Silva

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Evoco-o quase sempre, sem hora, sem data. Vejo-o a caminhar por Belém, junto ao rio, com o sol no olhar; na tv, fascina-me o desprendimento. Como é bom viver deste modo simples, sábio e, como a nuvem, passar... passar, mas deixando memórias perenes - rumo, bússola, caminho sempre apontado-, definição pessoal já que as palavras nunca são completas.

- Às vezes, quando vou visitar amigos que têm crianças, levo bolos ou brinquedos; como é normal, eles atiram-se logo às prendas. Mas vem a mãe e diz assim: “Já agradeceu?” Pronto, aí o poético é imediatamente destruído. Muitas vezes não deixamos as crianças serem o que são…
- Pois…é verdade… estrangulamos toda a autenticidade…
- Às vezes, ouvia contar uma história sobre umas índias na Bolívia, acho que era na Bolívia, que não gostavam do feitio da cabeça com que lhes nasciam os filhos. Então, punham-lhes umas talas, para eles terem a cabeça “apresentável” em sociedade, e só quando a cabeça se aproximava do formato de um cubo, então é que as mães bolivianas ficavam satisfeitas.
Hoje, as pessoas dizem: oh!, felizmente acabaram essas brutalidades, acabou essa porcaria toda! Mas na verdade não acabou, porque, hoje, quando uma pessoa faz um curso e consegue alcançar o doutoramento, em geral sai de lá com a cabeça cúbica.
LM- Ainda tem gatos?
- Sim.
LM- Como se chamam os bichos?
- Assim que algum deles está pronto para passear, basta eu dizer-lhes: terraço. E eles já sabem, vão logo a correr à minha frente para o terraço, é só abrir a porta.
LM- Mas como é que se chamam?
- Não têm nome, nunca me disseram… mas acho que era indecente dar-lhes um nome, de certeza que eles também não aceitavam. Mas se eu pronunciar as palavras “gato” e “gatinha”, eles percebem logo…
LM- Que jornais lê normalmente?
- Leio o Calvin no Público. Aliás, é sempre a primeira leitura que faço é a do Calvin e do tigre do Calvin. Acho que, no jornal, a coisa que vale mais é aquilo que está ali; só depois é que vou ver as notícias.

Luís Machado, A Última Conversa - Agostinho da Silva (1995)

3 comentários:

gin-tonic disse...

Um personagem muito interessante. Não o entendeu muito bem, também não fez grande esforço. Os seus últimos anos de vida foram explorados pela televisão de uma maneira quase patética.
Foi um estupendo divulgador cultural, publicou centenas de pequenos livrinhos e nunca se preocupou em tirar disso qualquer lucro. Exilou-se no Brasil porque, como funcionário público que era, tinha que assinar um documento em que, entre outras coisas, teria que declarar que não pertencia a organizações que professassem ideias contrárias ao espírito da Nação. Não pertencia mas queria ter a liberdade de um dia pertencer, se para aí estivesse virado. Numa daquelas conversas vadias na televisão perguntaram-lhe o que pensava da morte: "Não penso nada. Porque não morri não tenho nada que me pronunciar sobre esse assunto. Deixem-me morrer e depois se houver alguma coisa para dizer, e se puder, eu comunico."

Luís Bonifácio disse...

No mesmo apartamento, morrerria uns anos mais tarde o Eduardo Guerra Carneiro. Que também faz falta.

teresa disse...

E ainda uma pequena achega aos vossos interessantes comentários e referências a outras figuras marcantes, neste caso, o Eduardo Guerra Carneiro que só aqui tive o privilégio de conhecer à superfície:

"De todos os hábitos a que nos entregamos, um reina sobre todos os outros no que se refere a malefícios quanto ao mundo futuro. Ê o hábito de ter chefes. O medo das responsabilidades, o gosto de se encostar aos outros, o jeito mais fácil de não ter que decidir os caminhos fizeram que a cada instante lancemos os olhos à nossa volta em busca do sinal que nos sirva de guia. Quando surge uma dificuldade de carácter colectivo, a primeira ideia é a de que devia surgir um homem que tomasse sobre os seus ombros o áspero martírio de ser chefe. Pois bem: pode ser que isto tenha trazido grandes benefícios em outras crises da História; nem vale por outro lado a pena saber o que teria sido a dita História se outras se tivessem apresentado as circunstâncias. Mas, na presente, a verdadeira salvação só virá no dia em que cada homem se convencer de que tem que ser ele o seu chefe. Ou, dentro dele, Deus."
(chamar-lhe ia "lema de vida")

Agostinho da Silva, in 'Textos e Ensaios Filosóficos'