Dando ainda voz a estes Olhares da Lua, colectânea da escola secundária do "Monte da Lua", não resisti a divulgar outro registo, este identificado. Para quem leu as impressões sobre a cidade de Lisboa, será curioso deter-se sobre um pedaço de prosa com características completamente distintas:
O Espirro
Ontem tive um dos ataques de espirros mais longos da minha vida. Absolutamente incontrolável. Faz-me lembrar de uma vez em que eu viajava num táxi e o taxista (penso que devia ser surdo), de cada vez que eu espirrava, dizia: "Como?..." O que vale é que eu não precisava de repetir - os espirros encarregavam-se de ir saindo. Quando muito, sempre que o homem dizia : "Como?...", eu tentava assegurar que o espirro seguinte saísse ainda mais alto. Abria mais a boca, para o som sair amplificado.
Mas o que me deu que pensar foi isto: caramba, o corpo humano é uma máquina tão admirável, tão bem concebida numa série de coisas... Porque é que o espirro existe? A explicação científica do espirro diz que ele é uma coisa boa, positiva, trata-se do organismo a encarregar-se de expulsar corpos estranhos e desagradáveis das nossas "ventas", do nosso sistema respiratório. Deus inventou [...] várias maneiras de expulsarmos coisas que não queremos dentro do nosso próprio corpo. Quando precisamos de as expulsar, mesmo que estejamos num jantar importante cheio de pessoas importantes, podemos sempre dizer: "Com licença, volto já." - e vamos calmamente à casa de banho e expulsamos o que temos para expulsar. [...]
Assim sendo, porque é que o espirro não funciona da mesma maneira? Porque é que, ao sentirmos a necessidade do espirro, o nosso corpo não nos dá tempo para que digamos à pessoa que está à nossa frente: "Só um momento, volto já", altura em que nos deslocaríamos para... salas de espirro. Sítios recatados para onde poderíamos ir espirrar, limpar o nariz, puxar o autoclismo e pronto!
Os espirros atacam de formas inesperadas e inconvenientes. Podemos estar, por exemplo, a tentar impressionar uma miúda, a usar o nosso tom de voz mais sexy - "Olá, jeitosa... como vai isso, hem?" - e tudo pode ser fatalmente interrompido por um espirro ou, pior ainda, por uma série deles. "Olá, jeitosa..." Tudo beeeAAAATSCHH!!! AAAATSCHH!!!". Haverá jeitosa que queira ter uma experiência romântica com um tipo que ali está à frente dela aos gritos, a desfazer-se em ranho e a ficar com os olhos inchados e todo vermelho?
Uma das coisas que invejo nas mulheres é o modo discreto como elas conseguem espirrar. As senhoras conseguem fazer do espirro uma coisa socialmente aceitável e que não interrompe jantares de nenhuma espécie. Elas fazem aquela coisa maravilhosa que é: o espirro vem a chegar e elas ... Aaaah...aaah...QUI." Deus equipou as mulheres com um silenciador. É como nas armas. Elas conseguem fazer "QUI" e assim detêm os espirros antes que eles rebentem. É incrível!!!
[...] Quando eu tentei seguir o maravilhoso método das senhoras para espirrar, ninguém me acusou de ser extremamente efeminado pela simples razão que ninguém percebeu que eu estava a espirrar. Eu pensava que era fácil fazer aquilo que elas fazem: apanhar o espirro quando ele está quase a sair... QUI. Não é assim tão fácil como isso. No meu caso, estava na casa de um colega meu quando decidi deter o espirro perto da saída. Para não espirrar alto. No fim de contas, em vez do discreto "QUI" de que as senhoras são capazes, o som que saiu foi pior do que se eu tivesse deixado o espirro sair livremente. A sensação que deu foi que eu tinha tido um breve momento de loucura. Os pais do meu colega estavam a perguntar-me como estava a correr a escola e eu respondo qualquer coisa do género "CJJJJJEE".
Odeio espirrar. Um dia isto ainda vai ser a minha desgraça.
Rui Dias, 16 anos (transcrito com supressões)
4 comentários:
Sinceros parabéns ao Rui Dias!
Adorei o sentido de humor.
Senti-me menos só ao ler as desventuras do Rui, pois também eu necessito de uma sala de espirros, se possível, à prova de som.
A teoria do espirrar à moda feminina comigo não se aplica, que em nada domino "a arte de bem espirrar" e o irreprimível som que sai, após um período de incontrolável asfixia, nada tem a ver com um singelo e elegante : "Aaaah...aaah...QUI".
Recuso-me a tentar uma onomatopeia que reproduza alguma das minhas crises.
Só digo que os meus filhos mesmo a uns bons metros de distância põem os dedos nos ouvidos e barafustam muito, muito, achando que o mínimo que eu poderia ter feito seria avisá-los ou controlar-me de forma a produzir um espirro com um pouco de estilo: "Aaaah...aaah...QUI".
há uma magistral prancha do achille tallon sobre espirros (cheia de fabulosas onomatopeias) e uma análise num enorme computador a determinar o origem dos ditos.
uma alergia aos lenços de papel...
E o cheiro do espirro? Cada qual cheira diferente:)
Espero que a leitura do texto não potencie, nos leitores, uma idêntica crise de espirros.
Não conheço o Rui, senão perguntava-lhe se foi influenciado pela BD, mas lá que os lenços de papel provocam alergias, disso não duvido:)
Quanto à constatação da T ... (não tenho aqui o "emotion" de espanto do wordpress)...
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