19 de março de 2006

OS TRAPEZISTAS DE LIVERPOOL

Ainda ando a remoer a coragem de dois adeptos ingleses que vi entoando cânticos de exaltação ao seu Liverpool F.C. Nada de admirar, não fosse a particularidade de naquela noite estar um vento gelado, daquele que até bloqueia o cérebro e os tipos estarem vestidos com os calções e camisolas do clube e com umas bandeiras de pano fino. À falta de peixe frito com batatas fritas, os “beefs” lá aderiram à bela bifana e ao consagrado coirato e ali estavam eles, junto da rulote das respectivas, com uma litrada de cerveja com que alimentavam as entranhas e adormeciam a clarividência. No meio da populaça que espreitava, enregelada, para o televisor onde se via o jogo que decorria ali ao lado, no Estádio da Luz, estes teriam passado desapercebidos, já que trajando da mesma cor dos locais, loucos daqueles, em trajes quase menores, temos cá qb, agora passar o jogo todo, entre adeptos adversários, vangloriando os feitos do seu clube (não se calaram, mesmo quando o Benfica, quase no final da partida, desferiu o golpe de misericórdia nos visitantes). Talvez a velha aliança Luso-britânica tenha contribuído para os dois “supporters” serem tolerados entre a mole de lampiões que além do frio a que resistiam, viam os efeitos deste serem aumentados pela visão dos dois britânicos, ali em pêlo, sem que nada os fizesse vacilar. Há dias de sorte, digo eu. Mas, mesmo perdendo, lá foram eles confraternizar com todo o “fair-play” com outros adeptos, portugueses e ingleses.

O amor clubista presta-se a estas coisas e a natureza humana é propícia a vencer desafios, a alcançar metas, a atingir fins, competir e testar limites, sejam eles de grande importância e significado ou então coisas mais fúteis, como um mero jogo de “tetris” desses que temos nos telemóveis. Eu ando para bater o recorde da minha filha, há semanas e sinto-me muito próximo de o conseguir; sendo uma banalidade, serve de exemplo para demonstrar esse tal carácter de competitividade.

Findo o Benfica Liverpool, não demorou muito a que se esvaziasse a área envolvente na zona do Estádio da Luz. O tempo estava bom para comemorar noutros locais que não a rua. Vendo que as coisas estavam calmas no Metro, o comandante do policiamento mandou levantar a operação montada para a vigilância e acompanhamento no mesmo e tratei de recolher a minha rapaziada. O ponto de reunião era junto a uma das rulotes em frente ao Colombo, agora em tempo de levantar arraiais mas onde ainda se despachavam as últimas buchas e “bujecas”. Éramos sete e após saciarmos os estômagos com a famosa “fast-food” à portuguesa (deixem que os tipos da Mc.Donald’s se apoderem da ideia e ainda verão um dia uma versão yankee do belo coirato franshisada pelo globo), café bebido para assentar as gorduraças e toca a entrar para a carruagem do metropolitano, rumo aos Restauradores. A carruagem ia composta. Poucos eram os que vinham do Estádio. A grande maioria era os habituais utentes daquela hora, funcionários do centro comercial ou clientes que regressavam a casa, nada de gente eufórica, vinda do Estádio, daqueles que destabilizam sempre o ambiente, quer tenham ganho ou perdido. Connosco entraram cinco ingleses, todos na casa dos 35/40 anos que destoavam no meio dos passageiros não pelo seu aspecto de “bárbaros do norte”, mas sim porque entoavam cânticos, bem desafinados diga-se, glorificando o seu clube. Raios, os tipos tinham perdido mas mesmo assim, faziam um chinfrim do caraças. Bem, enquanto fosse só barulho, bastava ir de olho nos seus movimentos e no resto dos descendentes de Viriato que com ar tolerante lhes iam aturando as lengalengas. Somos mesmo um povo tolerante e hospitaleiro, pensei, enquanto os observava. Uma troca de olhares entre nós foi o suficiente para que se mantivessem todos alerta, não fosse algum lusitano mais nacionalista, armar-se em papoila saltitante, transformar-se em heroi e começar a desancar na bifalhada.

A certa altura da viagem, por entre cânticos que alternavam entre as glórias clubistas e explícitos achincalhamentos à Lusa Pátria e seus nacionais, dois dos britânicos dispuseram-se a efectuar algumas habilidades de tipo circense pendurando-se nas pegas de apoio do tecto, fazendo demonstrações de força braçal e baloiçando-se à laia de trapezistas de feira. Os “Mens” começavam a entrar na provocação mais que explícita; começavam a provocar um certo mal-estar e rapidamente se abriu um espaço em seu redor. Quem estava por perto decidiu sair dali para evitar problemas. Os destemidos ingleses, vendo os efeitos da sua acção, continuaram na sua conduta, cada vez mais espalhafatosa e aproveitaram para afastar mais alguns passageiros. A receita era óptima. Por aquele andar, à escala da carruagem, dentro de minutos teríamos um enclave britânico tipo Gibraltar, ali mesmo, dentro do comboio. A populaça já não estava a gostar muito da brincadeira e as coisas não estavam piores porque a língua dos Ilhéus era desconhecida para a maioria, além de estar misturada com valentes cargas etílicas que dificultavam a compreensão para quem percebia o inglês.

Eu observava esta cena muito próximo da fronteira do espaço conquistado pelos irrequietos senhores, tentando manter a calma enquanto jogava uma partida de “tetris” no meu telemóvel. Estava confiante que em breve os tipos se cansariam ou então sairiam no Marquês de Pombal e aí seguiríamos o grupo, para “espiar” os seus passos, não fossem fazer das deles. Ali dentro, era mais complicado intervir sem que houvesse danos colaterais e era melhor evitar confrontos entre a populaça, tanto mais que, à civil, é mais complicado actuar nestas situações. Eis quando, estando eu nestas cogitações, um dos “artistas” balança-se com mais força, bate com os pés no tecto da carruagem e no movimento descendente quase me atinge com as botifarras que trazia calçadas. Decidi que tinha de acabar com aquilo. Já estava a passar das marcas e a tolerância termina quando se entra nos limites do achincalhamento e da provocação. Dirigi-me ao “trapezista”, exibi-lhe a carteira policial e dirigi-me a ele num inglês de escola:

- Police. Enough. We will put an end to this, already.

O tipo, manteve-se pendurado nos apoios do tecto, olhou-me com desprezo total, “arreganhou” a dentuça e deve ter pensado lá para ele, o que seria que aquele peso- pluma ali em frente queria fazer com ele.

- Stop now – tornei.

- Fuck of… – o animal, além de mal-educado, era atrevido e logo encolheu as pernas para me pontapear.

Felizmente a minha reacção foi mais expedita, já que o tipo, além de já estar cansado, tinha os movimentos adormecidos pelos litros de cerveja que guardava no estômago. Segurei-lhe um dos braços e precipitei-me sobre ele, caindo ambos no chão da carruagem. Na tentativa de amparar a queda, a minha mão, em vez de assentar no chão, assentou-lhe na cara e logo por azar, era aquela em que tinha a carteira profissional, ficando-lhe marcado o distintivo da corporação na testa à laia de troféu de batalha. Os que o acompanhavam, ao ver a cena, acorreram em seu auxílio e não vinham certamente com vontade de me convidar para uma cerveja no Cais do Sodré. Mas rapidamente se viram dominados, um por um pelo resto dos polícias que iam discretamente embrulhados com os passageiros. Olhei em redor. O espaço “conquistado” pelos ingleses, além de retomado, tinha agora ficado mais deserto de utentes que antes da sua investida. O tipo, apesar dos apelos dos seus consórcios, que entretanto tomaram consciência da realidade, ainda continuava a tentar atingir-me, apesar de dominado por dois dos meus rapazes. Entre encontrões e bofetadas (nestas ocasiões há sempre quem aproveite para dar umas palmadas), uma velhota, a única que resistira sentada ali junto dos atrevidos ingleses, aproveitava para distribuir umas “frutas” e “carolos” no indivíduo, misturadas com uns certeiros e rápidos golpes da sua mala de mão; no meio da breve contenda, terá sido ela quem mais “molhou a sopa”.

Acalmadas as coisas, encetado diálogo entre o mais “sensato” dos do grupo, após uns incontáveis “apologizes” das quais só acredito na sua sinceridade pelo medo de ir em cana, não pelo respeito pela autoridade, lá saíram eles, nos restauradores e mandados para o exterior do Metro, para apanharem um pouco de ar fresco e reflectir. O mais atrevido deles, à saída da carruagem ainda continuou a insistir que queria “conversar” comigo, “man to man”, lá fora na “street” e não parava de dizer que um dia ainda me iria lembrar dele. A velhota que atrás referi, ainda o atiçou mais. À nossa saída gritou toda esganiçada um vitorioso e estridente – Viva o Benfica!...

Ah! Já me esquecia; não é que o sacana do inglês me fez perder o jogo quando faltavam menos de 100 pontos para bater o recorde da garota!...


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