A bicicleta pela Lua dentro
- Mãe, Mãe -
A bicicleta pela lua dentro - mãe, mãe -
Ouvi dizer toda a neve.
As árvores crescem nos satélites russos.
Que hei-de fazer senão sonhar
Ao contrário, quando novembro empunha -
Mãe, mãe - as telhas dos seus frutos?
As nuvens, aviões, mercúrio.
Novembro - minha mãe – com as suas praças
Descascadas.
A neve sobre os frutos - filho, filho -
Janeiro com outono sonha então.
Canta nesse espanto - meu filho – os satélites
Sonham pela lua dentro, na sua bicicleta.
Ouvi dizer novembro.
As praças estão resplandecentes.
As grandes letras descascadas:é novo o alfabeto.
Aviões passam no teu nome –
Minha mãe, minha máquina -
Mercúrio (ouvi dizer) está cheio de neve.
Avança, memória, com a tua bicicleta.
Sonhando, as árvores crescem ao contrário.
Apresento-te novembro: avião
Limpo como um alfabeto. E as praças
Dão a sua neve descascada.
Mãe, mãe – como janeiro resplende
Nos satélites russos. Filho – é a tua memória.
E as letras estão em ti, abertas
Pela neve dentro. Como árvores, aviões
Sonham ao contrário.
As estátuas com polvos na cabeça,
Florescem com mercúrio.
Mãe – é o teu enxofre do mês de novembro,
É a neve avançando na sua bicicleta.
O alfabeto, a lua.
Começo a lembrar-me: eu peguei na paisagem.
Era pesada, ao colo, cheia de neve.
Ia dizendo o teu nome de janeiro.
Enxofre – mãe – era o teu nome
As letras cresciam em torno da terra,
As telhas vergavam ao peso
Do que me lembro. Começo a lembrar-me:
Era o atum negro do teu nome,
Nos meus braços como neve de janeiro.
Novembro – meu filho – quando se atira a flecha,
E as praças se descascam,
E os satélites tão russos avançam,
E na lus floresce o enxofre. Pegaste na paisagem
(eu vi): era pesada.
O meu nome, o alfabeto, enchia-a de laranjas.
Laranjas de pedra – mãe . Replendentes,
As estátuas negras no teu nome,
No meu colo.
Era a neve que nunca mais acabava.
Começo a lembrar-me: a bicicleta
Vergava ao peso desse grande atum negro.
A praça descascava-se.
E eis o teu nome resplendente com as letras
Ao contrário, sonhando
Dentro de mim sem nunca mais acabar.
Eu vi. Os aviões abriam-se, quando a lua
Batia pelo ar fora.
Falávamos baixo. Os teus braços estavam cheios
Do meu nome negro, e nunca mais
Acabava de nevar.
Era novembro.
Janeiro, começo a lembrar-me. O mercúrio
Crescendo com toda a força em volta
Da terra. Mãe – se morreste, porque fazes
Tanta força com os pés contra o teu nome,
No meu colo?
Eu ia lembrar-me: os satélites todos
Resplendentes na praça. Era a neve.
Era o tempo descascado
Sonhando com tanto peso no meu colo.
Ò mãe, atum negro –
Ao contrário, ao contrário, com tanta força.
Era tudo uma máquina com as letras
Lá dentro. E eu vinha cantando
Com a minha paisagem negra pela neve.
E isso não acabava mais pelo tempo
fora. Começo a lembrar-me.
Esqueci-te as barbatanas, teus olhos
De peixe, tua coluna
vertebral de peixe, tuas escamas. E vinha
cantando na neve que nunca mais
acabava.
O teu nome negro com tanta força –
Minha mãe.
Os satélites e as praças. E novembro
Avançando em janeiro com seus frutos
destelhados ao colo. As
estátuas, e eu sonhando, sonhando.
Ao contrário tão morta – minha mãe –
Com tanta força. e nunca
- mãe - nunca mais acabava pelo tempo fora.
Herberto Hélder, 1971
(eu sei é um poema avassalador e gigante.
Mas faz bem lê-lo)
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