24 de março de 2005

Interpretação de Um Sonho

A. foi acordado por volta das vinte para as oito. Antes de ser acordado o seu sono fora perturbado, tornara-se mais leve e foi-lhe possível recordar o sonho ainda meio a dormir. É difícil estimar a duração real do sonho mas o mesmo terá chegado ao fim por volta das sete da manhã.

A. não se lembra ou não quer lembrar-se ou prefere omitir os factos sexuais da infância.

Declaração preliminar – No dia anterior à noite do sonho, A. passou o dia na expectativa intensa do jantar dessa noite, a ter lugar com amigos e com S., por quem A. nutre um certo interesse afectuoso. Da parte da tarde, A. deslocou-se à faculdade para obter todas as mensagens de email enviadas e recebidas em formato compacto. O facto significativo do dia e da noite foi o encontro com S..
Dois dias antes do sonho, numa tarde com alguma chuva, A. observou uma camioneta virada de lado a seguir a uma contra-curva na entrada do Eixo Norte-Sul (sentido Norte-Sul). A. achou curioso que, poucos dias após uma reportagem na SIC sobre a perigosidade daquele local e após durante um ou dois anos perguntar-se a si mesmo como era possível nunca terem ocorrido acidentes naquela zona (o que, de facto, era um erro), observasse finalmente um acidente naquela contra-curva.

Sonho de x de Março de 2005 – A. conduz o seu carro por uma estrada com contra-curvas perigosas, ladeada por um monte arborizado e uma ribanceira verdejante. O local por onde se desloca, porém, não é o Eixo Norte-Sul mas sim qualquer zona familiar que A. não consegue identificar. Um acidente com o seu próprio carro sucede. A., a pé, decide ir à procura dos destroços do seu carro e encontra vários carros acidentados ao longo da estrada. Não os encontra e fica a saber que o carro ficou irremediavelmente destruído. Pelo chão da estrada encontram-se carros destroçados, de cujas janelas saem partes dos corpos dos seus ocupantes. A. é totalmente insensível a este cenário.

ANÁLISE[1]

O desejo realizado neste sonho é o de comprar um novo carro. A. tem ponderado realizar essa compra mas não considera haver um bom motivo que a justifique. Sobretudo, A. considera que tal compra seria insensata pela quantidade de dinheiro envolvida. A destruição irremediável do seu carro oferece-lhe um motivo suficientemente forte para a compra. Este desejo, ainda que seja de grande intensidade psíquica no sonho-manifesto, não está relacionado com os factos do dia anterior ao sonho. Isto leva-nos à seguinte questão: existirá no sonho-latente um desejo cuja maior intensidade psíquica tenha sido deslocada para o desejo da compra do automóvel? A chave para esta questão essencial está num outro elemento do sonho-manifesto, elemento ao qual vêm culminar por condensação várias correntes de pensamentos originadas num mesmo elemento do sonho-latente.

A. conduz o seu carro por uma estrada com contra-curvas, ladeada por um monte arborizado e uma ribanceira verdejante – As contra-curvas equivalem evidentemente às da entrada Norte do Eixo Norte-Sul. Em vigília, A. consegue identificar a zona arborizada: trata-se de um local próximo a uma floresta onde A. costuma ir passear de bicicleta ou fazer caminhadas. Nos dias anteriores ao sonho, A. ponderou (desejou) convidar S. a ir a esse local arborizado. Mas este cenário campestre corresponde também ao cenário de um certo jogo de computador de corridas de automóvel. No dia em que A. conheceu S., esta contou-lhe que não só conhecia como havia jogado esse jogo de computador, o que produziu uma sensação mista de espanto e contentamento em A.. Na zona arborizada do sonho estão portanto condensados dois locais: a floresta aonde A. se dirige nos seus passeios e o cenário de um jogo de computador (sendo este um “local virtual”). E ambos os locais são destinos ou origens de duas correntes de pensamentos que provêm ou levam ao elemento de maior intensidade psíquica do sonho-latente: S..

Pelo chão da estrada encontram-se carros destroçados, de cujas janelas saem partes dos corpos dos seus ocupantes. A. é totalmente insensível a este cenário – A insensibilidade daquele que sonha face a cadáveres deverá ser interpretada diferentemente conforme sejam cadáveres de conhecidos ou de desconhecidos. É preciso atender ao pormenor de que o que é visualizado no sonho não são cadáveres mas partes dos mesmos. Os cadáveres não são de pessoas conhecidas: nenhum desejo escondido é satisfeito por esta parte do sonho; as partes dos cadáveres associam-se a uma conversa ocorrida no jantar e que terá sido iniciada por S..

Encontra vários carros acidentados ao longo da estrada – Sendo nítida a dimensão numérica dos carros acidentados (são vários), esta parte do sonho vem enfatizar o facto de que A. estava errado na sua crença de que nenhum acidente havia ocorrido na zona perigosa do Eixo Norte-Sul. Sendo um indivíduo que nunca se deixa convencer por ninguém e que acredita sempre que as suas opiniões são a verdade absoluta, definitiva e eticamente irrepreensível em relação a todo e qualquer assunto[2], porque quererá A. assegurar-se de que uma crença sua possa estar errada? Na noite anterior ao sonho, A. ficou absoluta e definitivamente convencido de que S. não pretende ter jamais qualquer relacionamento de natureza sexual com ele. A motivação para o desejo de as suas crenças serem passíveis de erro é então evidente. Esta parte do sonho-manifesto satisfaz esse desejo.

Tendo o sonho-manifesto sido interpretado parte a parte (ou seja, foi analisado), resta agora proceder ao trabalho de síntese dando resposta ao que falta interpretar: porque razão a intensidade psíquica do desejo de estar errado em relação a uma crença de conteúdo sexual desfavorável foi deslocada para o desejo de comprar um novo automóvel? É sabido que a deslocação é um dos mecanismos ao serviço do processo de distorção dos sonhos e que este processo é realizado com propósitos censórios, ou seja, a distorção visa a repressão de um desejo. O que leva a força censória a reprimir aquele desejo é a atitude consciente e defensiva de A. de não ter expectativas em relação ao que considera ser uma impossibilidade: a de encetar um relacionamento de natureza sexual com S..

Na construção do sonho-manifesto, o elemento automóvel foi seleccionado e foi-lhe atribuído uma importância central. Esta selecção e atribuição é facilmente explicada pelo potencial de múltipla determinação do elemento automóvel. Este elemento associa-se aos factos pouco significativos da reportagem na SIC, da observação do acidente, do jogo de computador. Muito mais significativamente, o automóvel é o espaço de realização de actos de natureza sexual; a compra de um novo automóvel é a alusão a um desejado novo relacionamento. E, de um modo geral, um automóvel está relacionado aos prazeres da velocidade e do movimento, prazeres esses que poderão ter tido a sua génese em experiências com importância sexual durante a infância.

Posto que o trabalho de interpretação do sonho está concluído, a tradução dos pensamentos-sonhados manifestos em pensamentos-sonhados latentes apresenta-se evidente ao leitor: o sonho da estrada com contra-curvas em que vários carros, incluindo o próprio, ficaram acidentados significa a satisfação do desejo de que a crença na impossibilidade de um relacionamento sexual seja errada.


Comentário crítico:

A aplicação do método e dos conceitos associados ao método de interpretação de sonhos de Sigmund Freud permitiu neste caso particular obter com relativa facilidade uma interpretação plena de sentido e coerente sob toda e qualquer perspectiva; é de registar a importância de várias factos ocorridos antes do dia anterior ao sonho, pelo que será útil investigar se esses factos teriam ou não sido lembrados no dia anterior ao mesmo.


Bibliografia:

Freud, S., The Interpretation of Dreams, Wordsworth Editions, England (1997);
_______, Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, Livros do Brasil, Lisboa (2001).

[1] O trabalho de análise ora apresentado beneficiou grandemente de ter sido realizado poucas horas após o sonho.
[2] Esta conformação intelectual de A. não terá, de resto, facilitado o trabalho ao intérprete deste sonho (o sujeito da análise “quer-se” inteligente mas dócil).

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