14 de outubro de 2004

Direita/Esquerda

(ideias que me foram surgindo enquanto lia a crónica de hoje de José Pacheco Pereira no público http://jornal.publico.pt/2004/10/14/EspacoPublico/O01.html)

1º Esquerda/direita é uma distinção ainda necessária porque ainda não é universalmente incontroverso o facto de que o sistema de mercado ("capitalismo") da direita é, em todos os aspectos e sob todos os pontos de vista, superior ao sistema de direcção central ("socialismo"/"comunismo") da esquerda.

Ainda que os socialistas "modernos" (de "3ª via") aceitem o sistema de mercado na economia, ainda recusam o sistema de mercado na sociedade ("economia de mercado sim, sociedade de mercado não"). Portanto, esquerda/direita é uma distinção que ainda (infelizmente) faz sentido na economia e continuará a fazer na sociedade. (Peço desculpa por usar o termo "sociedade" no seu sentido menos técnico mas não pretendo que estas reflexões tenham um carácter técnico mas sim o carácter de serem o mais acessíveis que é possível).


2º A distinção esquerda/direita tornou-se necessária em Portugal quando a convergência para o centro do PS, pela esquerda, e do PSD, pela direita, ao tornar as políticas e o desempenho governativo dos dois partidos mais comparáveis, pôs em relevo diferenças quer ao nível da qualidade da execução quer ao nível da qualidade das personalidades. A comparação era pois possível porque, no que concerne as grandes ideias políticas e económicas, os programas e a prática daqueles governos eram idênticos.

Desta comparação, o PS saíu extremamente fragilizado: um partido de incompetentes no plano técnico e de fracos no plano pessoal. Descontentes com esta diferenciação baseada na competência e qualidade, foi necessário chamar novamente a distinção esquerda/direita. Simplificando, o apelo eleitoral socialista podia ser entendido como qualquer coisa como "somos muito incompetentes comparados com o PSD mas ao menos nós temos ideologia e eles não; além disso, a nossa ideologia é mais justa". A ideia de que a ideologia deles é mais justa baseia-se no velho preconceito de que os trabalhadores são vítimas, são frágeis e são explorados, quem se preocupa com eles é bom e a esquerda é que tem o monopólio da preocupação com eles.


3º A distinção esquerda/direita, no seu sentido mais original, refere-se às posições económicas. Ainda que seja possível decalcar ideários sociais ou estritamente políticos a partir de um ideário económico, é conveniente que haja uma distinção específica para as posições estritamente políticas. Essa distinção existe: trata-se do eixo autoritarismo/liberalismo.

Em Portugal é muito difícil pensar ao longo deste eixo: por um lado, a reminiscência muito viva e de carácter atávico da antiga ditadura de direita criou um trauma anti-direita e anti-autoritarismo declarado (ainda que benevolente); por outro lado, o liberalismo, ainda que seja possivelmente o primeiro conjunto de ideias que, por suficientemente integradas, mereceram e merecem o nome de "ideologia" na Europa, não tem qualquer tradição ou referência ou apoio em Portugal.

Recorrendo a apenas uma dimensão (esquerda/direita) torna-se pois difícil classificar os quatro possíveis quadrantes de posicionamento político: esquerda autoritária, esquerda liberal, direita autoritária e direita liberal.


4º A questão das distinções ideológicas parece ser novamente um tema de debate pelo facto de os meios de comunicação social, por um certo tipo de motivações, darem primazia aos debates das chamadas "questões fracturantes", em que supostamente, as diferenças ideológicas se tornarão mais evidentes quer em relação a partidos quer em relação a indivíduos. Na minha opinião, essas questões são maus indicadores ideológicos: uma mesma posição numa dessas "questões fracturantes" pode ser transversal a vários partidos ao longo do mesmo eixo esquerda/direita.

Por outro lado, eu suspeito de que o apego que certos partidos têm pelo debate dessas questões serve precisamente o propósito de dificultar o juízo que se possa fazer em relação ao posicionamento ideológico desses partidos e também o propósito de encontrar temas que funcionam como "nichos de mercado políticos": votem em nós porque, ainda que não revelemos abertamente a nossa ideologia, nós somos os únicos a preocupar-nos com isto ou aquilo.

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