30 de setembro de 2004

Com açúcar, com afeto

Ontem em conversa falei da minha mãe, que agora vejo ocasionalmente. Não sinto grandes saudades, estou segura que nem ela. Ela está, ela é e isso chega-me. Ligamo-nos ocasionalmente. É provavelmente a melhor pessoa que conheço. Não que seja digna de um altar. Não. É generosa sem ser paternalista, tem defeitos, mas não exerce tanto como poderia. Não sei falar dela, nem devia, tudo acima parece desajustado. Admiro a minha mãe. Todos os dias luta contra as contas da mercearia e da luz, contra as más escolhas que pagou caras, nada disso se nota ou a preocupa mais que a conta. Sempre achou tudo aquilo normal. Prevalece. Admiro-a por não se ter deixado corromper pelas mesquinhices que vêm com a idade, muitas delas já me movem a mim que sou tão mais nova: a vaidade, o orgulho, a maledicência, a inveja, a certeza que a idade nos dá a razão, que a experiência nos dá valor – aquela coisa que nos faz interromper o outro para contar isto e aquilo que nos aconteceu e de seguida dar conselhos. A minha mãe sofre no entanto de uma incompetência dramática: a sua completa falta de jeito para escolher homens. Chegou a rir quando lho disse. Não é nada que a preocupe, a vida é como é e ela é feliz. Esta canção lembra-me sempre dela.


Com Açúcar, com afeto

Com açúcar, com afeto
Fiz seu doce predileto
Pra você parar em casa
Qual o quê
Com seu terno mais bonito
Você sai, não acredito
Quando diz que não se atrasa
Você diz que é operário
Vai em busca do salário
Pra poder me sustentar
Qual o quê
No caminho da oficina
Há um bar em cada esquina
Pra você comemorar
Sei lá o quê

Sei que alguém vai sentar junto
Você vai puxar assunto
Discutindo futebol
E ficar olhando as saias
De quem vive pelas praias
Coloridas pelo sol
Vem a noite e mais um copo
Sei que alegre ma non troppo
Você vai querer cantar
Na caixinha um novo amigo
Vai bater um samba antigo
Pra você rememorar

Quando a noite enfim lhe cansa
Você vem feito criança
Pra chorar o meu perdão
Qual o quê
Diz pra eu não ficar sentida
Diz que vai mudar de vida
Pra agradar meu coração
E ao lhe ver assim cansado
Maltrapilho e maltratado
Ainda quis me aborrecer
Qual o quê
Logo vou esquentar seu prato
Dou um beijo em seu retrato
E abro os meus braços pra você


Chico Buarque

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