6 de maio de 2004

Minha Querida Intimidade

Enquanto se resolvem e não resolvem as "causas sociais" da criminalidade, os pequenos delinquentes fazem o que lhes apetece e, se são apanhados, são considerados vítimas dos pais, vítimas do sistema, vítimas do capitalismo e do racismo, etc., etc.. Enquanto for proibido urinar e fornicar nas ruas, não vejo que privacidade possa ser invadida com as tais câmaras de vigilância.

Em qualquer loja de roupa de qualquer centro comercial há câmaras. Em qualquer café ou tasca há um espelho na parede para que quem estiver ao balcão possa observar o público enquanto que, de costas para este, tira os cafés. Contra-argumento do costume: só entra em estabelecimento comercial quem quer enquanto que as ruas são públicas. Este argumento é destruído pela mesma razão que destrói todos os argumentos pela manutenção do segredo bancário.

A razão é dupla: primeiro, nem toda a vida privada deve ou pode ser secreta; segundo, há uma diferença entre vida privada e intimidade da vida privada.

Em primeiro lugar, consideremos o salário de um funcionário público que é transferido todos os meses dos cofres informáticos do Estado para a conta bancária desse funcionário. Estamos a falar de conta bancária privada e pessoal, de salário que vai para uma pessoa concreta e "singular" (um civil, um trabalhador, uma pessoa concreta o que é bem diferente de uma entidade administrativa ou pública). Portanto, esse salário é vida privada. Mas é um absurdo querer proteger essa quantia do conhecimento público ou torná-la secreta: todos os salários da função pública são definidos ou por decreto-lei ou por portaria ou por outro documento qualquer que é publicado na publicação diária e pública que é o Diário da República. Além disso, todos os funcionários públicos, mesmo os não vinculados, vêem (e vê quem quiser ler o Diário da República) os seus nomes publicados aquando da sua contratação. Portanto, este é um exemplo de facto da vida privada que é público não no sentido jurídico e estrito mas no sentido substancialmente mais importante que é o do senso comum: é público o que é conhecido e que pode ser legitimamente conhecido por todos (pensem no que seria impedir os constribuintes de saber quanto ganham aqueles que supostamente os servem).

Em segundo lugar, nem tudo o que é vida privada é da vida íntima. O quanto alguém recebe por mês é privado mas não íntimo: por exemplo, o salário de alguém, esse número expresso em euros, nem revela nada da personalidade de quem o recebe, nem revela os seus gostos nem as suas opiniões nem aponta nenhum facto da vida pessoal passada. Já a forma como o dinheiro é gasto, se em camisas ou em cds, se em viagens ou carros, se em livros e quais os livros, se em família ou com amigos, revela muito, ou mesmo tudo da vida íntima de alguém. A história das despesas de uma pessoa revela da sua intimidade tudo excepto uma parte, possivelmente pequena, dos seus pensamentos.

As ruas são públicas. Nós vivemos as ruas em privado mas não em segredo. Além disso, o muito que se vive nas ruas não é essencialmente íntimo. Agora, se a intimidade é realizada na rua à vista de todos, qual o problema de ser também à vista da câmarazinha de vigilância? Os namorados podem tentar engolir-se mutuamente à vista de todos e não se sentem embaraçados por isso, mas já não podem fazê-lo à vista da câmara, cujos milhões e milhões e milhões de imagens captadas só serão vistos por alguém, por uma pessoa, em caso de haver necessidade de investigar alguma coisa?

Portugal tem muitos problemas. De facto, em Portugal tudo tem problemas. De facto e em bom rigor, em Portugal tudo é mau. Falando com mais clareza ainda: tirem a atmosfera, os escritores e os poetas, e Portugal é uma porcaria. Será que faz sentido que um país tão mau se oponha a todas as tentativas de resolver algum problema? Ou será que aqueles que se opõem têm uma ideia melhor (e que esteja fora do campo das utopias...)? O que é então preferível às câmaras??

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