(Este é um post ressabiado. Enfiei-o no meu coiso e nada de comentos... e como aqui o pessoal é mais despachado: cá vai. É favor não ligar à introdução totó!)
Não sou de me lembrar de excertos de livros. No entanto há dois, este e um outro do Crime e Castigo, que nunca me abandonaram. Quando os evoco sinto ainda a mesma perturbação, a mesma dor no estômago, uma espécie de vertigem. Posso dizer que não sou a mesma depois de os ter lido.
Aqui não acontece como com Jekyll e Hyde (o bicho apartado do humano), aqui estão juntos num só homem. Em todos nós. Esta é a voz de Humbert Humbert.
Amava-te. Era um monstro pentápode, mas amava-te. Era desprezível e brutal, era torpe, era tudo, mais je t’aimais, je t’aimais! Ah, e havia ocasiões em que sabia o que sentias, e era um inferno sabê-lo, minha pequenina! Bonita Lolita, corajosa Dolly Schiller.
Recordo-me de certos momentos – chamemos-lhes icebergues do Paraíso – em que, depois de me saciar dela – depois de fabulosos e insanos esforços que me deixavam inerte e manchado de azul –, a apertava nos braços com – finalmente – um gemido mudo de humana ternura (a sua pele brilhava à luz de néon do pátio, que entrava pelas fendas da gelosia, as suas pestanas negras estavam coladas umas às outras e os seus graves olhos cinzentos mais vazios do que nunca – era, para todos os efeitos, uma pequena doente ainda confusa da anestesia, depois de uma grande operação), e a ternura transformava-se em vergonha e desespero, e eu embalava a minha solitária e leve Lolita nos braços de mármore, e gemia no seu cabelo quente, e acariciava-a ao acaso, e suplicava-lhe mudamente a bênção, e no auge dessa angustiada e desinteressada ternura humana (com a minha alma veramente a pairar junto do seu corpo nu e pronta a arrepender-se), de repente, ironicamente, horrivelmente, a luxúria impunha-se de novo – e «oh, não!», gemia Lolita, com um suspiro para o céu, e no momento seguinte a ternura e o paraíso despedaçavam-se.
Vladimir Nabokov em Lolita
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