4 de fevereiro de 2004

O encontro que faltava (e o único que interessava)

- Bom dia!
- Ora!
- Porquê? Acha que não está bom dia?
- Acho sim.
- Então por que disse ora?!
- Porque gosto de dizer essa palavra. Além disso, é uma palavra que me foi deixada em herança pelo meu tio.
- É uma boa razão.
- Devemos conservar o que os nossos antepassados nos legaram.
- Com certeza. Não tinha pensado nisso.
- Assim como o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos.
- Ainda bem que o diz!
- O senhor é muito amável.
- Não, não. Digo o que penso.
- E eu agradeço o que ouço.
- Seja como for, bom dia!
- Ora!
- Porquê? Acha que não está bom dia?
- Acho sim.
- Então porque disse ora?
- Porque estou farto de dizer todavia.
- É uma boa razão.
- Gosto mais da sílaba tónica em ó do que em i.
- Com certeza. Não tinha pensado nisso.
- Desculpe, sabe para que lado fica o Cais do Sodré?
- Sei.
- Obrigado.
- De nada.
- É para a direita ou para a esquerda?
- Esquerda.
- Obrigado.
- Melhor dizendo, direita.
- Ah, compreendo. Não tinha reparado que o senhor não tem lado direito.
- É de nascença. Só tenho o outro perfil.
- O esquerdo?
- Exacto.
- É lógico.
- Tenho de me ir embora. No entanto, mais uma vez lhe digo: bom dia!
- Ora!
- Porquê? Acha que não está bom dia?
- Acho sim.
- Então porque disse ora?
- Porque está sol.
- Não vejo a relação.
- Não há relação nenhuma.
- É uma boa razão.
- Além disso eu tinha de dizer alguma coisa senão não havia comunicação entre nós.
- Com certeza. Não tinha pensado nisso.
- A propósito, o senhor é casado?
- Não.
- Dá-se com a sua sogra?
- Não me queixo.
- Filhos?
- Uma filha.
- A mais nova ou a mais velha?
- A do meio.
- Faz muito bem. Já vi que o senhor não gosta de extremos.
- É verdade. Nem é necessário dizer-lhe que este ano não vou de férias.
- De facto, não é. Mas se não achava necessário dizer-mo, porque é que mo disse?
- Para evitar que o senhor julgasse que eu tinha alguma coisa para lhe dizer e não fosse capaz.
- É estimulante conversar consigo. Palavra puxa palavra.
- Nesse caso podemos marcar outro encontro.
- Acho bem. Cada vez é mais difícil encontrar pessoas com quem se possa manter uma conversa.
- Quando nos voltamos a ver?
- Quando o senhor quiser.
- Obrigado... E onde?
- Onde o senhor quiser.
- É muito amável... A que horas?
- As suas horas serão as minhas.
- Fico-lhe muito grato. Nesse caso, lá estarei.
- Eu também.
- Até breve.
- Até depois.

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