Meu caro H.,
Este
despacho começou por ser uma diatribe contra a barbárie que tenta destruir o
SNS, com um apelo à participação maciça na greve de Julho e ao combate em todas
as frentes, tudo isto com banda sonora de Gil Scott-Heron - The revolution will not be televised, ou, numa versão para os
mais novos, com Muse - Uprising.
Deixei a marinar de ontem para hoje. E mandei tudo para o lixo virtual do
computador. Decidi que hoje não me apetece, e tu não mereces, perder tempo com isto.
Quando chegar o momento de lutar lá estaremos, na linha da frente.
É que,
entretanto, acabei de ler um livrinho que já estava publicado desde 1991,
ganhou um Somerset Maugham Book Award
no ano seguinte e tornou-se livro de culto. Não o conhecia. Apanhei-o outro dia
por acaso e marchou num ápice. O livro chama-se But Beautiful, foi escrito por Geoff Dyer, escritor e ensaísta
inglês, e fala de jazz. Foi recentemente traduzido pela Quetzal com o título Mas é Bonito.
Este não é
um livro comum. São pequenas histórias, ou que aconteceram ou que poderiam ter
acontecido, parafraseando o Inimigo
Público. Dyer pega em fotografias e textos e recria momentos ou períodos de
vida de alguns dos maiores da história do jazz. A fazer a ligação entre
histórias há uma viagem de automóvel através de um pedaço da América. Ao
volante, Harry Carney. No lugar do morto vai Duke Ellington, a congeminar e rabiscar
ideias musicais para novas peças.
Não te vou
contar as histórias, claro, mas posso referir-te os nomes convocados. Lester
Young, Thelonious Monk, Bud Powell, Ben Webster, Charles Mingus, Chet Baker,
Art Pepper. Há outros nos bastidores, igualmente grandes.
Estas
histórias não são simples nem fáceis. O fio condutor é o talento quase
impossível dos retratados e o modo como esse talento sobressai das suas vidas, na
maioria dos casos caóticas. Há de tudo: racismo, insultos, agressões, álcool de
todas as proveniências, drogas de todos os géneros e feitios, violência, doença
física, doença mental, prisão, electrochoques, tratamentos, reabilitações,
recaídas. E há momentos de bondade, dedicação, voluntarismo, profissionalismo,
rigor, improviso, tenacidade, apoio mútuo, enfim, da beleza de que fala o
título. A música, essa, está lá sempre, seja numa carruagem de comboio, seja
num apartamento minúsculo com o banco do piano a entrar pela cozinha, seja no
pátio de uma penitenciária em que o som de um sax alto directo aos céus gera o
silêncio total. Essa música, essa vocação, é mais forte que as circunstâncias
envolventes. Mesmo quando tudo parece estar perdido os protagonistas ressurgem,
e só a morte os cala - a doença quase incapacitante, que à maioria oblitera, a
estes não o consegue fazer. Mingus em cadeira de rodas, Roland Kirk primeiro
cego e depois hemiplégico, continuam a fazer música até ao fim. E os músicos de
jazz tocam em sessões contínuas, noite após noite, sete noites por semana, sempre
obrigados a reproduzir com fidelidade os temas e de improvisar sobre eles,
fazendo algo que, sendo sempre igual, se torna sempre único - uma diferença que
só os próprios e os que os ouvem compreendem.
O livro
termina com um ensaio sobre jazz que o enquadra historicamente e reflecte sobre
o seu futuro. Passados mais de vinte anos sobre a sua escrita o jazz continua
vivo e recomendável, apesar da contínua produção de produtos de fancaria para
vender às massas.
E só agora me
apercebo de que, na verdade, nunca deixei de falar de nós e do SNS. Bem podem
tentar destruí-lo, bem nos podem massacrar com horários impossíveis e tarefas
impossíveis. O SNS pode estar ferido, depauperado, vítima de malnutrição e de
atrocidades variadas. A verdade é que continua lindo. E vai resistir.
Até sempre e
um abraço,
A.
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