15 de setembro de 2006

A Festa

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Nunca lá tinha ido. Nunca calhou. Por preguiça, desleixo, deixa andar ou o que fosse. E este ano lá fui até à Atalaia, guiado por mão carinhosa e conhecedora.

Dia um
Chegámos ao fim da tarde de sexta feira. Entrada tranquila. Famílias, miudagem, primeiras imagens de heterogeneidade populacional e ideológica, fazendo conviver velhinhas alentejanas com
piercings, mohawks e kaffiyehs. Sinais visíveis de uma organização bem sedimentada. Contam-me que de início havia muita poeira onde hoje há relva resistente. Filas valentes para a comida. Excelente início de festa com caldo verde e espetadas. Nos próximos dias, contudo, traremos sanduíches e beberemos a cerveja local.

Uma tenda indica “Festa do disco”. Lá dentro passo-me. Tenho nas mãos uma cópia em vinil, em excelente estado, de canções do Serge Regianni por cinco euros. Rock sinfónico em quantidades industriais, claramente dirigido à malta da minha geração.

No palco principal a Sinfonietta de Lisboa ataca Lopes Graça sinfónico e um concertino para piano, o que é, à partida, uma aposta de coragem. E uma aposta ganha, apesar de um som algo rachado dos violinos, tendo em conta um relvado cheio de gente tranquilamente deitada a ouvir aquela música excelente e difícil. Serviço cultural público puro e duro. Noite terminada a ouvir fados no Auditório (uma tenda, note-se): primeiro uma homenagem a Alain Oulman por três excelentes fadistas jovens (Carla Pires, António Zambujo e Liana) e, depois, uma Cristina Branco em magnífica forma com um grupo de músicos excepcional. No final oiço, pela primeira vez, uma música contagiante, de recorte medieval e popular, e observo atónito o súbito enlouquecer dos presentes em todo o recinto, saltando como doidos e dançando de roda. É a primeira vez que ouço o hino da Festa. Quando chegar ao fim dos três dias conhecê-la-ei de cor e estará gravada de modo irritante no meu subconsciente. Recomenda-se assim cuidado no uso do clip do Your Tube que a Tzinha pôs ali em baixo, que aquilo vicia.

Dia 2
Chegada perto das quatro da tarde. Calor de ananases. Primeiro objectivo, ver a prestação dos Contra3aixos, formação composta por três dos mais prestigiados contrabaixistas portugueses: Carlos Barreto, Carlos Bica e Zé Eduardo, o decano, figura de proa do contrabaixo de jazz europeu. Primeira decepção: a subtileza da música perde-se completamente no auditório, em que a malta continua a conversar animadamente, pouco ligando ao palco. Não assistimos à totalidade do concerto e retiramos.

Visita aos pavilhões temáticos. Exposições bem delineadas, com o profissionalismo a que o PC nos habituou, ainda que algo pesadas e a pedir actualização estética. Na área de Astronomia telescópios permitem aos passantes observar o sol e, mais tarde, a lua e as estrelas. Mais serviço público. No Café-Concerto diz-se poesia. Retenho uma frase: “tenho orgulho em ser um cidadão da União Soviética!” (ou algo semelhante) dita enfaticamente no final de um poema, sob aplausos entusiasmados dos assistentes. Não será a única manifestação da liturgia comunista a que assistirei. Assinaremos, entretanto, uma petição a favor da despenalização do aborto.

Hora do jantar a ver os Peatbog Faeries, um dos mais interessantes grupos escoceses de fusão celta e rock da actualidade (ainda por cima vindos da ilha de Skye, onde o superlativo Talisker é produzido...). Violino, gaita e pífaro virtuosos, pontuados por metais, guitarras e bateria, um som forte e tudo muito animado. À noite os Xutos, muito aguardados, trabalhando para uma massa enorme de convertidos que reconhecem cada música aos dois primeiros acordes da guitarra do Zé Pedro. Deram o concerto do costume. Noto que o João Cabeleira está a solar muito bem. O resto da banda competente, certinha e deixando os adeptos contentes. Fim de festa como já se sabe – tudo aos pulos e a dançar de roda. Falhei o Laurent Filipe e os Taraf de Haidouks e não devia.

Dia 3
Chegada cedo, perto das três da tarde, debaixo de uma torreira, com a finalidade de ver as Mawaca, de que o Carlos aqui nos falou entusiasticamente. Só percebemos que elas não vão aparecer depois de um belo concerto, metido no programa à pressão, da Filipa Pais (com um guitarrista espantoso mais bandolim e bateria). A ausência das Mawaca foi, para mim, a decepção da Festa.

Mais uma volta, incluindo a Feira do Livro. Receio levar com a cartilha comunista em todo o seu esplendor. Receio infundado: a Caminho, compreensivelmente, tem a parte de leão logo à entrada, mas o resto é uma livraria completíssima, eclética, estruturada por editoras e com catálogos abrangentes. Muita gente a comprar.

Em redor o calor faz estragos. Nas casas de banho a malta toma banho de mangueira. Os lagos estão convertidos em piscinas infantis. Casais e gente avulsa dormem aos molhos na relva ou em cartões de caixas. A Festa consegue esta proeza de converter uns milhares em “sem abrigo” momentâneos. Um casal chama-nos particularmente a atenção, dormindo profundamente e amorosamente aninhados um no outro. Só não os fotografo por pudor. Verifico com desagrado que muita malta mais nova se enfrasca violentamente em tudo o que vem à rede, usando garrafas de água de litro e meio para o efeito. Nos concertos mais animados, aliás, vagueia pessoal entre pedrado e com narças de caixão à cova que dá que pensar.

Ao fim da tarde a procissão para a grande missa comunista – o comício – é digna de ver, com grupos alentejanos, bandeiras, JCPs e afins. A celebração inicia-se à hora marcada, de terreiro cheio. Os muitos que não vão para lá acompanham pelos altifalantes, quer queiram quer não, os discursos dos camaradas no palanque. Bom momento para descontrair a comer mais uma sanduíche e beber uma cerveja, e comprar um CD de cantares alentejanos do grupo “Vozes da Planície” da Baixa da Banheira. Neste momento já me chamaram camarada duas ou três vezes – uma sensação algo estranha.

À hora de jantar os franceses Babylon Circus entram a abrir no palco principal e põem de novo o pessoal aos saltos. Mais tarde a estrela do momento, Boss AC, demonstra por que motivo chegou ao topo da cadeia alimentar. Concerto magnífico, profissionalíssimo, em que o seu hip hop amorangado derrete corações adolescentes, pós-adolescentes e adolescentes tardios, não se coibindo, contudo, a um poderoso “Farto de…”, monumental peça anti-discriminação, e dando a palavra aos novos valores do hip hop nacional Melo D, Chullage, Diana, Sam the Kid, B Boys. O concerto termina de modo comovente (nice touch…): Boss AC vai buscar a mãe, a cantora cabo-verdiana Ana Firmino, e com todos em palco acaba-se com “Sôdade”, a Festa inteira a cantar em uníssono.

Fogo de artifício (houve todas as noites) e o hino da Festa. Até eu saltei. Saída tranquila do espaço perto das onze da noite, que a ética comunista não esquece que amanhã, segunda feira, é dia de trabalho. À saída o porteiro despede-se: “Até para o ano, camarada!”.

Lá estaremos.

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