1 de maio de 2023

Silêncio



O nada anda ao redor do meu ouvido

Não ouço o nada ao redor

E ainda assim

há um barulho ensurdecedor

como se fosse o silêncio

falando em voz alta

das horas que antecedem o sono

Resta um sussurro manso

Respiro o som do suspiro

Dormir acalma as horas

A tinha sonora dos sonhos

Embala o que não cabe na fala.


Do meu livro "Capsulas de Oxigênio"

 

Short Cuts de véspera do recomeço

Mistura



O tempo, exigente, não deixa o coração aquietar-se. Varia, aqui e ali. Ora, transborda de esperança. Ora, se aflige. Fosse o coelho de Alice estaria gritando: é tarde, é tarde, é tarde, é muito tarde. Mas não o é. Ainda assim, segue correndo. Desabalada carreira contra um tempo que... nem sei. Ora, euforia. Ora, angústia. O sol na janela avisa que nasceu o dia. O penúltimo dia deste ano. Bato os olhos no calendário. O coração aquecido pela percepção do fim. O coração exultante pela perspectiva do recomeço. Viver é testar essa mistura. Dor. Alegria. Desconsolo. Tesão. Impulso. Mansidão. Certeza, mesmo, só uma. Viver exige coragem. E poesia. 

 

Partida

 

Não houve prorrogação possível. Não era preciso. O jogo definiu-se faz tempo. Arquibancadas vazias. Em torno do vasto gramado fez-se o silêncio das torcidas ausentes. Refletores apagados. Penumbra de um dia que avisa ser quase noite. Só o leve sussurro do vento cruzando as redes sob a trave. Apenas isso. Um filme lhe assalta a memória. Este, sim. Recheado de gentes. De todos os credos. De todas as raças. De todas as cores. Sorrisos estampados, abraços incontidos, lágrimas de alegria, êxtase. O universo aos seus pés. E esse olhar soberano faz o mundo levemente se transformar. Vislumbra a razão. É a bola. Parada no centro do campo. Em despedida solene. Ele caminha em direção a ela. Na caminhada, discerne o real do imaginário. Ou, não. Já não é necessário distinguir um do outro. 

 

Aqueles passos outrora ágeis, temidos pelos adversários, eram a causa do deslumbramento de milhões de olhares. Agora, traduzem em lenta confissão que tudo foi verdade. São donos de si. E seguirão pela eternidade. Num último esforço, aproximam-se de onde ela, impávida, espera. O pé se ergue e repousa sobre a bola. A bola. O pé. O corpo todo estremece. A terra toda estremece. Um sopro. Adeus, Pelé. 

 

Chegada


Ouço clarins. É anúncio de alvorecer. Ouço a onda quebrando na areia. É sinal de que o sal do mar purifica. O vento no rosto. Não é brisa. Nem tempestade. É vento. E sopra o suficiente para levar pra bem longe o que não presta. Por um instante, feito mágica, as dores do pensamento somem. Fica o que há de ser. Ergo o corpo. Paro na ponta dos pés. Rodo de braços abertos. Reconheço e assumo a felicidade. Em memória dos que não conseguiram chegar até aqui. Em defesa dos que ainda virão. Encho o peito de ar. A energia que abastece minha alma tem nome. Liberdade.

27 de janeiro de 2021

6 de junho de 2020

Diário da pandemia - 05.06.2020


HAI CAI DO SILÊNCIO

LONGO CAMINHO
SILÊNCIO A TEU LADO
CALADO E SÓ


HAI CAI DA DOR

TEMPO ESTRANHO
CORAÇÃO DOLORIDO
CHORO CONTIDO


HAI CAI DO ALÍVIO

POR HORA SOFRO
A NOITE SE DESENHA
E A DOR SE VAI


4 de maio de 2020

Caía a tarde feito um viaduto

Aldir Blanc - Foto: Reprodução redes sociais
Morreu hoje, no Rio de Janeiro, vítima de complicações provocadas pela COVID-19, Aldir Blanc. Escritor e compositor brasileiro, autor de clássicos eternizados na voz de Elis Regina, como "O bêbado e a equilibrista",  que tornou-se uma espécie de hino informal da Anistia.

Aldir Blanc foi parceiro assíduo de outro grande da música brasileira, João Bosco, com quem compôs "Mestre sala dos Mares", "De frente pro crime", "Dois pra lá dois pra cá".

A segunda-feira fica mais triste. E esse 2020 vai ficando mais repleto de quartas-feiras de cinza.

Aldir e João Bosco
Foto: Fabio Motta 

3 de maio de 2020

Diário de Pandemia - Deus é que sabe



Que dia é hoje?

A pergunta tornou-se usual, frequente, persistente, insistente, nesses dias de pandemia. É como se tivéssemos perdido a noção do tempo. E acho mesmo que perdemos. Em tempo de pandemia, vamos descobrindo como é viver o comedimento. Sobreviver com o pouco, reconhecer e respeitar os limites. 

No caso do tempo, tenho a sensação de que abrimos mão, sem querer, do calendário. Tornou-se obsoleto. Ou, adotamos por descuido, quem sabe, necessidade, uma versão mais simplificada. Meu tempo agora, por exemplo, cabe muito bem em três estágios: um ontem, um hoje e um amanhã. Agradeço e dispenso o excesso. Me encaixo ao resumo. Um tempo desmedido, sob medida.  

Está mais curta a respiração (mais anchos só mesmo os suspiros). Estão mais curtos os passos. Os gestos, menos efusivos do que foram a vida inteira. Acabrunhamos. Nos reservamos a distância medida. Nos abraçamos com olhares. Nossos olhos por trás das máscaras resguardam sorrisos e choros. Por vezes, entristecemos; por vezes, emocionamos. 

Volta e meia me assalta a pergunta: Que dia é hoje? E meu pensamento voa.  

Podia ser um dia qualquer. Com o sol brilhando lá fora. Com pássaros invadindo a manhã. Com as ruas cheias. Enxames de gentes e carros. Alguém tomando decisões. A vida virando do avesso. Um dia com flores no jardim, água corrente, balão solto no ar, velas ao vento e bicicletas na ladeira. Um dia qualquer. Um domingo qualquer.

Sem resposta imediata, abro a caixa de mensagens. Brilha um sinal. Tem nova. Roberto Além Rojo, meu compadre, cineasta boliviano, que foi pego de surpresa pela pandemia e está retido temporariamente no coração da África, me manda poesia em forma de imagem. 

Mal sabe ele, com uma possibilidade real de resposta à minha pergunta: que dia é hoje?
Na imagem que recebo, homens expostos ao mar azul do Pacífico, ocupam um barco onde se lê a resposta que peço, quase em oração: "Deus é que sabe".



Foto: Roberto Além Rojo

28 de março de 2020

Diário de Quarentena - O Brasil sob o vírus


Foto: Patrícia Leite
A semana que parece um século chegou à sexta-feira, aqui no Brasil.
Hoje, pela primeira vez em sete dias, vesti luvas e máscara e saí de casa para abastecer a dispensa e comprar remédios.

Quando essa história começou, sete dias atrás, eu e Pat, minha companheira de vida, fizemos um estoque compatível com o tamanho do meu apartamento. Sete dias de alimento e tranqüilidade. Saio, portanto, por absoluta necessidade.

Lá fora, encontro um país mudado. A revelia de quem queira pensar o contrário. Não, o que estamos vivendo não é uma coisinha pequena. Não é passageiro. Vai impor que se repense esse jeito veloz de desejar as coisas, de querer sempre mais.

Quem poderia imaginar que, um mês atrás, entrar em um supermercado ou uma farmácia usando luvas e máscara não fosse despertar estranheza? Ainda mais, neste país tropical - até aqui - abençoado por Deus? Mais do que isso: Quem imaginaria encontrar outras pessoas fazendo o mesmo e também achar absolutamente normal?

Há uma disciplina tácita que nos mantém, a maioria dos brasileiros conscientes, a uma distância protocolar e segura de dois metros, uns dos outros. Na fila do pão, à espera do atendimento no açougue, na fila do caixa, em qualquer lugar.

Ainda não há desespero em busca de produtos. Mas as máscaras já não são mais encontradas em farmácias. Nunca foram muitas. Agora, são raridade. Antes da necessidade de usá-las no dia-a-dia, nunca me passou pela cabeça comprar máscaras hospitalares. Álcool também é produto mais difícil de encontrar. No mercado em que fui, não havia papel toalha. Sabe-se lá, por quê?

O que se sabe é que todos estão mais atentos à higienização. O que é um bom sinal quando se luta contra um inimigo invisível, como esse tal coronavírus. Na porta da padaria, um funcionário segura um aspersor com álcool, à disposição de todos que queiram higienizar as mãos, ao chegar ou ao sair do estabelecimento.

No mercado de verduras e legumes, todos os caixas estão protegidos por uma lâmina de material acrílico, de tal forma que o ar que respiramos não seja trocado entre nós (clientes e funcionários).

Mas há uma mudança que é impossível não sentir: tudo está mais caro. Seja pela escassez dos produtos, seja pelo desabastecimento, pela dificuldade de produção... ou, mesmo, pelo oportunismo de alguns. A vida está mais cara em tempos de corona.

Volto pra casa com menos dinheiro, mas abastecido. Antes de entrar no apartamento, sigo os conselhos que médicos e especialistas sugerem: retiro os chinelos e as luvas. Estas, vão direto para o lixo. Os chinelos, para o banheiro onde serão lavados. A roupa segue para a lavagem também. Por fim, um banho se encarrega de me deixar limpo, livre de qualquer vestígio de impureza externa e pronto para seguir a rotina de casa em maior segurança.

É difícil conter  a intranquilidade nos olhos, toda vez que eles param na TV, ou no computador. O medo está entre nós. E vem em ondas com as notícias. O desafio é separar o que é falso e o que é verdade. São os novos tempos.

Quase no meio da tarde, recebo uma mensagem da minha professora Elvira Lobato. A mestra que me batizou de Maranhão Viegas, desde o primeiro dia de faculdade, na UNISINOS. Já lá se vão 38 anos. Nunca nos perdemos de vista e é sempre um prazer receber um sinal enviado por ela.

Hoje, despretensiosamente, me mandou um conjunto de imagens que mostrava monumentos públicos, de várias partes do mundo, protegidos com máscaras nos rostos. Como se fossem, eles mesmos, possíveis vítimas desse novo tempo. Refletiam uma inteligente forma de alertar: o mundo está sob ataque. E o uso correto de uma máscara pode salvar muitas vidas.

Pronto. Estava ali a inspiração que eu precisava para oferecer ao Repórter Brasil, telejornal da TV Brasil, do qual estou Editor-chefe, uma crônica de sexta. Ela nasceu. E está logo aí embaixo. Assim, encerro a primeira semana de isolamento. Vida que segue.



22 de março de 2020

Sobre sonhos e pesadelos

Resultado de imagem para o mundo

Visto daqui o mundo parece ter diminuído. À medida de uma gota. Perigosa gota. Visto daqui meus olhos enxergam um susto, um surto, um monstro. Como naqueles pesadelos de criança. Como nas noites de vento frio e falta de cobertor. 

Naqueles tempos, a monstruosidade assustava em sonho. E acabava no exato momento de acordar. Um segundo antes de o pior acontecer. Puf! A realidade vencia o medo. Ficava o espanto, que a gente dava conta de aturar. E com o passar do dia, o espanto ia ficando pequenininho, pequenininho, até sumir. À noite, na nova noite, não havia monstro, não havia pesadelo, o sono voltava ao normal. 

No hoje de agora, o sono pesa, custa a chegar. Dormindo não se descansa, acordado nos falta a paz. Nossos monstros de agora são tão reais quanto invisíveis. Dormir e acordar já não serve para espantar o que nos assombra o tempo todo. Monstro voraz que nos alcança em todo lugar. 


Está em nós, entretanto, alcançar o que ele não alcança. Tolerância. Aquilo que perdemos há algum tempo. Paciência, que ficou esquecida, sem valor agregado já faz hora. Leveza, que nos pesa de tão pesados.

O que o mundo uniu em velocidade instantânea, o que levou tanto tempo pra ser alcançado, nesse começo de século se perdeu como em sonho assombrado de criança, que não consegue se ver livre dos monstros, mesmo quando acorda. 

O que antes parecia unido e forte, for perdendo vigor, valor, valia. O ser humano virou bites. Mais zeros do que uns. Numa batida imperfeita e veloz, a imperfeição tomou conta do espaço sem dar permissão a desejos de sanidade. Insanos, nos tornamos estranhos. Monstros de nós mesmo. Nem dormimos , nem acordamos. Monstruamos. 


E agora, que a vida é posta em cheque, resta reconhecer o labirinto que construímos e perceber que não há saída à vista, se seguirmos sós, se insistirmos na solidão das nossas verdades absolutas, brutos, arrogantes, ignorantes.   

Achar o rumo, encontrar a saída, acordar do pesadelo adulto em que nos metemos exigirá humildade. Despidos dessa volúpia fugaz que nos envolve, a cada um e a todos, é capaz que se encontre uma nesga de luz. 


Antes, porém, haverá dor. Uma dor que não somos capazes de medir, a não ser quando nos alcança bem perto do peito, no fundo da alma. O mergulho que nos espera, dolorido e sem norte, é também o que nos levará a uma nova consciência. 


Quem sabe, uma descoberta da urgência infalível – corpo que pede espírito. Alma que transcende ao tempo. Matéria em fazimento orgânico de um nascimento novo, aprendendo a ser humano. De novo. 

9 de janeiro de 2020

O sertão do Brasil em forma de poesia


Quando ele nasceu, seu pai achou por bem lhe atribuir nome de apóstolo e de descobridor. João Cabral. Um menino predestinado? Talvez. Talvez, venha dai a poesia intrínseca, capaz de transformar a pobreza das gentes em riqueza essencial para a alma. 

O menino com nome de apóstolo e de descobridor honrou em vida suas duas joias de origem. Apostolou poesia sertaneja. Universalizou a dignidade humana com traços fiéis do Brasil mais profundo. Descobriu que podia ser muitos, sendo um só. E traduziu em seus versos o olhar que faltava para preencher de vigor o que o mundo só enxergava pela janela da tristeza e da dor.

Há cem anos nascia João Cabral de Melo Neto. Poeta brasileiro que desenhou, como poucos, o sertão em suas linhas tortas e certeiras.  



Vinícius de Moraes (esquerda) e João Cabral, em Paris, 1964.
Foto de Pedro de Moraes para o livro "100 anos de poesia".

9 de dezembro de 2019

Olhar avesso - o teu e o meu




O teu olhar e o meu
veem a mesma direção

O teu invade o guardado
O meu já sabe que não

Vista de longe a paisagem
Viagem na contramão
Esfrego os olhos aflito
recorro à intuição

Ei, sujeito, se emende
Abra o olho, ele te mostra
olhar que tens aí dentro
Já encontrou a resposta

O olho fechado é cego
O olho aberto é clarão
Pra um olho que inveja o vento
Ventania é furacão


Marcos Mendes e Maria Cláudia me deram um presente de início de ano: musicaram o meu poema. Motivo suficiente para acreditar num ano melhor do que o que se foi. A música vem logo ai, embaixo.  Meu silêncio explode internamente. Agradecido.



29 de agosto de 2019

Bacurau, Brasil


Bacurau (Brasil, 2019, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles) é o filme brasileiro que deve fazer Tarantino se perguntar “Como não fui eu que fiz”? Há nele uma história densa, de um Brasil profundo e real. Daquele Brasil que Glauber Rocha encontrou com sua câmera nervosa no sertão nordestino do Século passado. Ou, que Nelson Pereira dos Santos gravou com poesia árida, no mesmo sertão brasileiro. Mas tem mais. Não há luxo em identificar traços de Hitchcock, nem exagero em perceber suspense extraído da mesma fonte onde bebeu de John Carpenter.

Não é pouco, portanto. É muito e isso é bom.

Ele estreia nesta quinta-feira, 29.08, nas telas nacionais. Dias atrás, consegui vê-lo em pré-estreia. Por um lance de sorte. O meu tempo não coincidia com o das sessões do filme que originalmente planejava ver na noite de sábado. Para não perder a viagem passei os olhos nas alternativas e percebi que ainda havia uns poucos lugares, nas fileiras que ficam quase embaixo da tela, para a sessão de Bacurau, a primeira a ser exibida no Cine Cultura, aqui em Brasília.


Lá fui eu, sem saber o quê esperar de fato. Havia um frio em minha barriga. Pelo que já tinha lido, pelo resultado em Cannes, pelo receio do que veria. Esse tempo de incertezas faz a descrença virar sombra da gente. Mas já nas primeiras cenas fui seduzido por um roteiro porreta, uma direção ao mesmo tempo bruta e delicada e uma história que me sequestrou do mundo lá fora e me fez embarcar de corpo e alma na viagem para Bacurau. 

Bacurau é um lugarejo qualquer na imensidão de terra seca do Nordeste Brasileiro. O sertão que leva a Bacurau é muito parecido com o sertão de Big Jato (Brasil, 2016, direção de Claudio Assis), outro filme que carrega a brutalidade poética nordestina sem filtros (e que merece ser visto, caso o leitor ainda não o tenha feito). Há semelhanças e diferenças.

Um caminhão, por exemplo. 

O limpa-fossas, de Big Jato.  

Em Big Jato, o caminhão que trafega em meio à paisagem árida é um limpa-fossas, que recolhe esgoto dos outros, enquanto espalha odor de merda na vida de um pai que varia entre a honra do trabalho e a descrença na poesia da vida. Junto do pai, na boleia do caminhão, um filho adolescente cuja vivência oscila entre a rudeza do pai e a alucinação poética do tio. O menino tempera a merda da vida que leva com o cheiro perfumado da poesia.  

O caminhão de água potável, na entrada de Bacurau.
Foto: Divulgação, internet.  
Em Bacurau, o veículo inicial é outro. Não por acaso, é um caminhão de água potável que, além de matar a sede do povoado, traduz um ponto de referência, uma preciosidade do local. Traz água mas também traz notícia e traz gente. Nele, uma mulher volta à sua origem para viver o velório de sua avó, uma líder negra local (interpretada por Lia de Itamaracá). Ela tem emoção nos olhos e remédios na mala. Ela é filha de um professor, negro, digno, envolvente, visionário. Bacurau é um lugarejo onde a escola e o museu ganham importância maior que a igreja.  Big Jato é utopia. Bacurau é distopia. 

Cena do filme Bacurau
Há um latente espírito de solidariedade e tolerância entre os locais. A pobreza e o isolamento não são motivos para ignorância. O povo ali retratado tem o que virou moda chamar de “inteligência emocional”. Divide as mazelas, se identifica na dor e na alegria compartilhada. A vida no sertão não lhe tira o humor e espanta qualquer sentimento de menos valia. Em resumo, aquela gente é símbolo de resistência já cantada em verso e prosa. Por Luiz Gonzaga ou João Cabral de Melo Neto. Por Suassuna ou Guimarães Rosa. 

Lunga, o herói bandido ou bandido herói é digno da personalidade ambígua. É um lampião trans. Nem super-homem, nem mulher maravilha. Volta da reclusão para ajudar seu povo a resistir a uma invasão gringa. Nas palavras do professor (da cidade que não tem padre) ele não devia parar de escrever. Em Bacurau, Lunga reescreve sua história com suor e sangue. E ajuda a cidade a não sumir do mapa. Melhor, ajuda a cidade a ser o que é. 

Bacurau é sertão e é Brasil. Quem não viu precisa enxergar.  

Kleber e Juliano. Os diretores.
Foto: Divulgação
PS.: Não é preciso falar do vigor da música de Geraldo Vandré, da grandeza da imagem de Sônia Braga, nem da vitalidade dos atores anônimos que dão corpo ao filme. 



20 de agosto de 2019

O tempo por testemunha

Cora Coralina
Faz cento e trinta anos, nasceu uma menina bem por ali, pelo sertão de Goiás, no coração do Brasil, num lugar onde o tempo se encarregaria de transformar cidade em sinônimo de poesia.  Faz cento e trinta anos. 

Não havia, naquele tempo, quem previsse se ia chover ou não. Não havia mais do que o barulho de pássaros anunciando a manhã e o rumor do rio em movimento lambendo as pedras. 

Havia apenas a certeza de um novo nascimento. 

Faz cento e trinta anos e o tempo, testemunha desse milagre, parece não ter passado quando se pensa em poesia.  A janela da casa velha da ponte, segue aberta. Ainda dá para o mesmo horizonte que viu a menina Aninha nascer. 

De lá daquela janela, a menina que se fez Cora Coralina, segue impregnando quem quer que se aventure a lhe enxergar com o sabor doce dos seus poemas. 
Agora mesmo, nesse exato momento, como cento e trinta anos atrás. 

Tendo apenas o tempo por testemunha.