30 de janeiro de 2012

A fúria do manso



















O som da travagem de uma composição atirou-nos para fora da inóspita sala-de-espera colocando-nos no gélido cais da gare. Afinal tratava-se de um comboio de mercadorias a fazer compasso de espera pelo intercidade que aguardávamos.
- Aquela ali não tem frio!
Afirmou o meu companheiro de espera, referindo-se a uma adolescente que se apresentava em calções, procurando meter conversa de passar tempo.
- Sabe, nesta idade o espírito aquece a alma!
Respondi assim à solicitação de conversa. 
Ora bem, estávamos ali os dois encasacados e enrolados no cachecol, ele de boné, transmitindo-me a imagem de um pacato homem que já passou a meia-idade.
A conversa foi correndo pelos temas mais diversos: agricultura em Portugal ou a falta dela; a produção das nossas fábricas; a produtividade e a boa imagem lá fora do trabalhador português; o desvio das sedes fiscais das empresas do PSI 20; e outros temas da actualidade política e social.
Eu com o meu discurso optimista, ele com uma visão menos animadora da situação, mas consciente da boa qualificação dos portugueses. E de repente pergunta-me:
- Mas será que eles não sabem disto?
- Claro que sabem! Parece que não, mas sabem!
- Não! Não sabem! Pois parece-me que só vão saber quando alguns começarem a acordar com um buraco de bala na cabeça!
Nem de propósito o intercidades imobiliza-se na gare, o que permite esconder a minha falta de resposta e inquietação pela quase concordância.
Avisto nos degraus do comboio quem esperava, despeço-me:
- Boa noite, haja saúde!
Enquanto caminho pela gare, respondo ao meu desassossego:
- Cuidado com a fúria do manso.

Foto de Daniel Lourenço http://autoalgarvende.blogspot.com


3 comentários:

Luísa disse...

De todo me considero mansa, mas também não me imagino a pegar numa arma, não é o meu mundo (trabalhei num sítio em que chegava a estar menos de um metro dos coldres das armas dos polícias e... não gostava!).

Mas devo dizer que já me questionei sobre o assunto! Será que qualquer dia alguém perde o autocontrolo e é o descalabro? Ou, pior ainda (pelo menos na minha perspectiva), será que vamos chegar ao ponto em que a coisa só lá vai a ferro e fogo?

Assusta-me muito pensar que o "manso se pode enfurecer"!

Miguel Gil disse...

Luísa, sei, por característica própria, como é a explosão de um sereno a passar-se dos carretos.
Considero que é sempre preferível o vulcão ir periodicamente libertando alguma da sua energia explosiva.
Mas está tudo tão calmo ...

João Roque disse...

Perfeitamente de acordo contigo.
A fúria de um manso é terrível, porque é forçada por extremismos.