10 de janeiro de 2010

COISAS DO SÓTÃO



Volta e meia tem de ir ao sótão. À procura de uma coisa acaba por encontrar outras. E fica por ali a folhear, a olhar, algo que era para um tempo diminuto, acaba num enorme tempo perdido, mas que acaba por considerar o tempo mais bem perdido que lhe pode acontecer.
Dizer agora que encontrou um exemplar da revista “Vértice”, o nº 244-249, referente a Maio/Junho de 1964. Um dos artigos nela insertos chama-se “Poemas de José Craveirinha” e são apresentados por Rui Baltazar. Pode ler-se:
“Poucas vezes um crítico terá dito, tão cheio de certezas, de um artista que ele é o maior. Eis o que quero significar precisamente: José Craveirinha é o maior poeta de Moçambique”.
São reproduzidos oito lindissimos poemas de Craveirinha. Não resiste a compartilhar o que se intitula “Primavera”:

”Estamos sentados.
E nefelibatas bebemos coca-cola
nas públicas cadeiras da praça.

Sobre as envenenadas acácias
andorinhas geometrizam o azul do céu
e despercebidos passarinhos africanos
cantam nos verdes braços vegetais.

Num parque de cidade moçambicana
jovens discutem Brigitte Bardot
e abúlicas mãos tamborilam
no tampo da mesa fúteis dedos.

Um grupo de estivadores
vem do cais vestindo
serapilheiras
e passam a três metros e meio
das cómodas cadeiras da praça

Odes cantam nos ramos os bilo-bilana
e na surdina das tímidas meias palavras
e subentendidos silêncios
ansiosos todos esperamos
indolentes as flores
da nossa comum Primavera”.

Passado o tempo que passou, sabemos hoje, por que Primavera, homens como Craveirinha, esperavam.
De olhos humedecidos transcreveu o poema.
Lá fora está um domingo frio e chuvoso. Mas aguarda a chegada da Primavera, seja ela qual for.
Sempre!



A capa deste número da "Vértice# reproduz "Xitubana" ("A Pomba"), um desenho de Malangatana

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