8 de novembro de 2008

A encomendinha



O velho aforismo de ir ao dentista só quando dói o dente. O pai que, uma vez em jantar prolongado, lhe dizia que se pudesse voltar atrás na vida faria tudo de igual modo, excepto uma coisa: trataria melhor dos dentes.

Estão a ver, nas salas de espera dos dentistas, aquelas mesas cheias de jornais e revistas muito antigas, alguns ainda  do outro século? Revistas ditas cor-de-rosa, ou de “jet-set”, a falarem de um país do faz de conta, nomes que ele não conhece de parte nenhuma, que não sabe o que fazem, parece que são actores de novela, cantores de qualquer coisa. Uma das revistas descobre a mulher que roubou Rodrigo a Diana Chaves e fala também de Elsa Raposo refugiada num grande amor,  ou que Margarida Martinho já esqueceu o vocalista dos “Fingertips” e por aí fora. 

De repente dá-se conta de que há um mundo que lhe passa completamente ao lado, que possibilita que as bancas de jornais se encham destas publicações e que há quem as leia avidamente.

Mas, na mesa da sala de espera do dentista,  também estava um número antigo do jornal gratuito “Global” ,que nas páginas centrais trazia uma reportagem sobre o começo do ano lectivo. Informava que “este ano não há aulas em três aldeias do conselho transmontano de Montalegre. O interior do país assiste à morte do ensino. A escola tornou-se um conceito urbano”.

No corpo da reportagem fica a saber-se que um miúdo, vivendo em Fervença, estudava em Paradela, a meia dúzia de quilómetros de casa. Agora um autocarro vai diariamente buscar e levar o João a casa, cumprindo por caminhos serranos os cerca de 35 quilómetros que o separa de Montalegre. Ao todo serão duas horas de viagem, todos os dias. A situação preocupa o João: “Já não vou poder ir caçar saltões para a beira do rio porque no Inverno saio e torno a casa de noite.”

Quase que consegue perceber a tristeza na cara do João por não poder caçar saltões, sua gostosura de infância. 

A acelerada desertificação do interior do país tem levado ao encerramento de milhares de escolas. Muitas ficam abandonadas, outras, muito poucas, vão-se transformando em restaurantes, ou centros de dia para a terceira idade

Vem-lhe à memória “Os Meus Amores” de Trindade Coelho, possivelmente, depois dos Salgaris e dos Walter Scots, o primeiro livro de autor português que terá lido.

“- Muito bons dias. Lá de casa mandam dizer que aqui está a encomendinha.

Oh! Oh! A encomendinha era eu, que ia pela primeira vez à escola. Ali estava a encomendinha.”

Releu o conto. A determinada altura, o professor falando para a Srª Helena, a que levara a encomendinha, e perante uma risada geral da aula, diz:

“Caluda, seus fedelhos! Caluda, porque se peço licença à Srª Helena, começo numa ponta e levo tudo a eito, corro tudo a bolos, tudo, mas o que se chama tudo!

É o que vê, Srª Helena – disse então vitorioso, a sorrir-se, o bom do Sr. Professor – É o que vê! Um mestre sem palmatória é um artista sem ferramenta, não faz nada. Santa Luzia milagrosa! Aqui onde a vê tem feito muitos doutores.”

Fechou o livro. Lembrou-se das muitas reguadas que apanhou sem ter chegado a doutor. Por vezes essas reguadas eram dadas com tanta violência que havia que pôr a mão na parte metálica dos tinteiros das carteiras para aliviar a dor. Não deixa de, ironicamente, sorrir quando se sabe que hoje são  os pais dos alunos que  entram pela escola dentro, pela sala de aula dentro para dar umas bolachadas nos professores. Quando não são os próprios alunos a dar bolachadas nos professores.

Gostava de dizer mais qualquer coisa mas não quer alongar a prosa.

Como diz o outro, o mundo está perigoso

Nota do editor: a fotografia mostra uma Escola Primária do Estado Novo, em Mafarezes, distrito de Viana do Castelo, e há alguns anos abandonada

 

5 comentários:

Anónimo disse...

o meu primeiro também foi os meus amores seguido do in illo tempore (uma coisa menor sobre os tempos do senhor em coimbra).
há quem diga que o meu mau feitio vem de ter começado muito cedo a ler estas coisas e jamais ter passado os olhos pelos cinco, os sete, os três ou os vinte cinco.

Anónimo disse...

a terra não se chama mazarefes?
é que passo lá algumas vezes.
pela terra.
não pela escola

Anónimo disse...

na saída da a28 para darque, que me lembre fica aí

gin-tonic disse...

Caro anónimo: deve ter toda a razão. Porque, se passa perto regularmente está em melhores condições de quem só passou por lá uma vez. E nem é erro de teclado. Estava de passagem, viu a escola, tirou a fotografia e foi Mafarezes que escreveu no caderninho de notas. Também escreveu que a Escola fica perto da passagem de nivel da linha que deve ligar Porto a Viana do Castelo.
É muito gratificante ter leitores atentos. Muito obrigado pela sua correcção.
Um abraço

carlos disse...

o anónimo seu eu.
é que esse é um caminho que faço algumas vezes quando uso a 'naciona' e não a auto estrada para ir de barcelos a viana. ou quando decido sair na saida de darque