"Ao tempo em que eu chupava o meu primeiro cigarro clandestino, a Campo de Ourique, namorando uma loirinha da mansarda em frente, e a barba começava a dar-me a aparência dum fruto peco, descobri à Rua Ferreira Borges o maior de quantos barbeiros jamais me assentaram a mão nas faces: o Rego. Dessa vez tive barbeiro para um ror de anos, uns bons dez. (...)
Tinha o Rego uma filha casadoira, bem comportadinha, coitada, um modelo de virtudes a Campo de Ourique. Com uns arzinhos de sonsa, quem te vê não quebras um prato, deu-lhe para se apaixonar perdidamente por um vizinho, homem casado e, ao que parece, muito sério (todos nós somos sérios até à primeira), com laboratório de análises químico-farmacêuticas à referida Rua Ferreira Borges; e um belo dia à hora em que as fábricas do bairro apitavam e ela devia levar o almoço ao pai, num cabaz, fugiu com o homem das pipetas. Uma menina tão bem comportada. Nesse dia o Rego -barbeiro jejuou, coitado, e nunca foi possível averiguar que destino levou o cabaz com o almoço: os dois ternos amantes foram talvez comê-lo, em mavioso piquenique, para o Parque Silva Porto ou as furnas de Monsanto.
O caso provocou muita emoção. O Rego chorava, metaforicamente falando, ao meu pescoço, que me roia e danava interiormente por eu não ter aproveitado a garota. (...)
O Rego-barbeiro , coitado nunca mais se refez do abalo: ainda durou coisa de dois anos(....)
Lentamente afundou-se . A pele cerosa. Cuspia sempre, muito engasgado. Dava dó vê-lo. Tinha qualquer coisa no insófago(...) e uma tarde morreu serenamente, sem dor, de inanição, como ainda hoje se morre a Campo de Ourique.
Foi uma grande perda para mim, mas como o cabelo não parou de me crescer, comecei logo a procurar outro barbeiro(...) "
In Leah e outras histórias, José Rodrigues Migueís ,Estúdios Cor
Foto : Cortesia do Arquivo Municipal de Lisboa
Tinha o Rego uma filha casadoira, bem comportadinha, coitada, um modelo de virtudes a Campo de Ourique. Com uns arzinhos de sonsa, quem te vê não quebras um prato, deu-lhe para se apaixonar perdidamente por um vizinho, homem casado e, ao que parece, muito sério (todos nós somos sérios até à primeira), com laboratório de análises químico-farmacêuticas à referida Rua Ferreira Borges; e um belo dia à hora em que as fábricas do bairro apitavam e ela devia levar o almoço ao pai, num cabaz, fugiu com o homem das pipetas. Uma menina tão bem comportada. Nesse dia o Rego -barbeiro jejuou, coitado, e nunca foi possível averiguar que destino levou o cabaz com o almoço: os dois ternos amantes foram talvez comê-lo, em mavioso piquenique, para o Parque Silva Porto ou as furnas de Monsanto.
O caso provocou muita emoção. O Rego chorava, metaforicamente falando, ao meu pescoço, que me roia e danava interiormente por eu não ter aproveitado a garota. (...)
O Rego-barbeiro , coitado nunca mais se refez do abalo: ainda durou coisa de dois anos(....)
Lentamente afundou-se . A pele cerosa. Cuspia sempre, muito engasgado. Dava dó vê-lo. Tinha qualquer coisa no insófago(...) e uma tarde morreu serenamente, sem dor, de inanição, como ainda hoje se morre a Campo de Ourique.
Foi uma grande perda para mim, mas como o cabelo não parou de me crescer, comecei logo a procurar outro barbeiro(...) "
In Leah e outras histórias, José Rodrigues Migueís ,Estúdios Cor
Foto : Cortesia do Arquivo Municipal de Lisboa
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