12 de março de 2005

sobre a realidade, acho eu

Depois de desligar, Edith afastou-se do telefone com um azedume, um amargor no coração. Brett parecera-lhe hipócrita. O homem que ela amara, com quem vivera, cujo filho parira, parecera-lhe tão hipócrita como qualquer desconhecido a tentar dizer as palavras de circunstância adequadas.
Subitamente, sentiu uma clareza de gelo na cabeça. Olhou para o vestíbulo e para a escada familiares, para os cabides do bengaleiro, com olhos diferentes - ou assim julgou. Detestou tudo, detestou Cliffie, George, detestou até a imagem do seu próprio jardim. Abriu a porta da frente e deixou o ar gelado envolvê-la, entrar-lhe pelas narinas, onde pareceu transformar-se em cristal. Recordou o rosto em repouso da sua tia avó e, deliberadamente, apagou dele a deformação que a trombose causara.


Patricia Highsmith, O Diário de Edith


Acho brilhante que um transtorno se transforme assim numa disfunção do olhar. É mais que físico, é um abalo tão grande que muda a forma como percepcionamos a realidade. Em última análise muda até a realidade.

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