16 de março de 2005

Não-dias

Hoje foi quarta-feira, descansei. Este é o tal dia de que gosto desde há muito tempo, tanto que já nem sei bem porquê… e, actualmente, continuo a gostar. Descanso.
Na segunda-feira estive de banco. Na terça, devido às férias de um colega meu, estive de prevenção: que afinal acabou por se transformar em presença física até às cinco e tal da tarde.
Nestes dias a Urgência esteve particularmente caótica. Por razões que a razão desconhece foram-se, paulatinamente, acumulando doentes e doentes... e doentes. Além dos 12 doentes habitualmente internados em SO (Serviço de Observação), que é o local onde permanecem (por um período tão curto quanto possível…) os doentes mais instáveis e sujeitos a uma vigilância apertada - médica e de enfermagem -, estiveram internados no chamado "SO-corredor" cerca de 40 doentes por dia. Estes amontoam-se em macas alinhadas ao longo dos estreitos corredores e, a pouca observação que têm, vai pouco além das breve olhadelas de quem por lá passa. Isto tudo, para lá do ineterrupto trânsito de cadeirinhas e macas na zona dos Balcões.
E eu ainda me posso dar por feliz, não "vivo" na Urgência. Só lá vou quando sou chamado a opinar ou observar algum doente da minha área… e nestes dias chamaram muito. Infelizes, sim, os que lá têm que estar em permanência.
Mas quando lá vou é penoso.
E penoso não é ter que observar, avaliar e decidir a melhor atitude possível, face a um determinado caso. Isso pode ser só mais ou menos trabalhoso, exigir maior ou menor esforço, mas é a minha função. Penoso é tudo o que temos que fazer para poder executar essa função: o ninguém saber o que peguntamos e a constante resposta "não sei… pergunte ao Zé"; o não saber onde está o processo do doente ou a folha de registos de enfermagem… e ter que os procurar sabe-se lá onde; o não saber se o resultado da análise já chegou e ninguém se importar com isso… ou até saber se a colheita de sangue foi efectivamente feita; o conseguir alguém que transporte o doente para realizar um exame, que leve um mero pedido de transfusão ou apenas que dê uma simples injecção.
O penoso é, às vezes, tentar descobrir onde está o doente, e não o conseguir. Na segunda-feira "perdi" um doente: observei o Sr. Nicolau cerca da dez da manhã… como a história de hemorragia digestiva era duvidosa, tinha dor abdominal e o Rx era manhoso, solicitei observação por cirurgia; antes do almoço o colega disse-me que o estavam a avaliar e iam repetir o Rx; depois do almoço disseram-me que o doente não tinha nada cirúrgico e voltara ao Balcão; por volta das quatro da tarde perguntei no Balcão onde estava o Sr. Nicolau… o enfermeiro não sabia quem era, nenhum dos médico fazia a mínima ideia onde poderia estar e, no secretariado, não estava registada qualquer alta: "talvez naquele monte de fichas que falta introduzir", disseram-me… No corredor não estava, o Sr. Nicolau, desapareceu!
Ontem, eram cinco horas da tarde e estava cansado, mesmo muito cansado. Uma sensação de total esvaziamento e uma única vontade: sair dali o mais depressa possível e só voltar se me telefonassem. Enquanto esperava, junto à porta do balcão, por qualquer coisa de que já nem me lembro, dirige-se a mim um doente que nunca tinha visto, e diz de rompante:
- Mas será possível estar aqui há seis horas à espera de um resultado…?
- Se você está, é porque é possível… - retorqui.
- ...
Ele não merecia isto. Eu também não.

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