8 de setembro de 2004

Momentos que voam...

Encontrei-a mais tarde, em circunstâncias diferentes. A mãe morrera nesse dia e ela telefonou-me, não tinha mais ninguém que quisesse por perto. Abriu-me a porta e abraçou-se a mim, não chorou. Levou-me para a cozinha, estava a preparar o jantar para nós.

- Consegues? perguntei eu.

- Claro, o jantar que começaste ainda não acabou, espero que o senhor Manuel não me tenha enganado com a carne.

E sorriu...

Sentados à mesa, comemos a carne rosada que ela cozinhou e deixei-a conversar sobre tudo o que quis. A mãe, já fria numa urna numa qualquer capela, tinha-a martirizado toda a vida. A ela e ao pai. Chantagista, queria-a para criada, não se incomodava nada com os seus interesses. Quando me conheceu e esteve comigo alguns meses, viu a fealdade dessa mãe que supunha ter dado à luz uma pessoa para a servir. Por isso, levantou o copo com o último vinho que ia beber nessa noite e disse "À viagem dela, que vá para bem longe".
Pegou-me na mão e levou-me a mim, ao copo de vinho e a si mesma e fomos para a sala, onde o sofá trocista nos esperava. Zangou-se comigo porque não sabia como havia de esquecer o momento do supermercado, zangou-se porque a mim é que chamou para lhe fazer companhia nesse dia em que a mãe morrera. Viu-se no espelho dos meus olhos, compôs o cabelo e pousou o copo, vazio, na mesa que nos impedia de esticar as pernas. Pôs as mãos nos meus ombros e empurrou-me para trás, a boca esqueceu-se de que era o túnel por onde o ar entrava e foi roubar, da minha, o ar que me fazia falta. Deixou que o seu corpo pesasse no meu, deu-me a recordar que gosto tinha a sua língua vermelha, fechou os olhos e as lágrimas dela inundaram-me de repente! Apertei-a nos braços e deixei-a chorar, chorou enquanto se despia e me despia, chorou quando me voltou a beijar!
Depois, depois de ser mulher mais que alguma vez tinha sido, como se quisesse naquele momento aniquilar memórias que só agora começavam, depois de ter sido vento e ciclone, sossegou no meu peito, o corpo quente, as mãos presas às minhas e, nua, feita lençol do meu corpo também nu, disse, sussurrou, "Não vás!" e adormeceu...

Fiquei à espera que a claridade me dissesse que horas eram! Não precisava de nada, naquele momento tudo estava certo, as cores condiziam com a noite, o corpo dela condizia com o meu!

E as horas voaram, tal como tinham voado os momentos, tal como tinham voado os dias que foram nossos.


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