Lembro-me muito bem da minha primeira bebedeira. Foi no pico melodramático da minha adolescência, no tempo em que ganhei o concurso de poesia da escola com um poemita hediondo, um sucedâneo mal engendrado dos sonetos da Florbela Espanca – todas as colegas pediram cópias. Por esses dias eu andava apaixonadíssima pelo irmão (o motor do poema) de uma amiga (a do primeiro beijo, nem perguntem, hoje é uma valente parva). Acontece que era atada, e chamar aquela minha pancada de paixão platónica é o maior dos eufemismos. Delirava com o rapaz, é certo (especialmente de noite, como é normal), mas sempre que estava perto dele virava bicho, mais parecia que tinha engolido um barril de pólvora. Nunca sequer cedi um beijo (do que muito me arrependia cada vez que lhe fugia com a boca). Acontece que esta pancada durou muito tempo, talvez uns dois anos – o quem em anos adolescentes dá para aí uns cinco (anos de adolescente são assim como os anos de cão) – e nesses dois anos eu andei pior que o Deus me livre.
Devia ter cerca de catorze anos no dia da bebedeira. Estava naquele estado deplorável típico da juventude suspirante. Foi numa festa de aniversário de uma tia (também uma valente cabra), juntou-se a fome com a vontade de beber. Lembro-me de começar a noite muito triste, a festinha era uma seca, estava só a família. Lembro-me de me sentar num sofá e de experimentar um cálice de vinho do porto (ferreira, daquele muito barato, uma zurrapa). Assim fiquei, sentadinha no sofá, levantei-me só para discretamente desviar a garrafa para o pé de mim. A minha mãe nem desconfiou, alias nem ela nem ninguém. Só ficaram desconfiados quando me viram a andar sobre as linhas do soalho e a dizer a toda a gente que não estava bêbeda. Tinha bebido meia garrafa da tal zurrapa (acho que o meu fígado ainda não se recuperou). E continuei noite fora a fazer quatros e a deitar-me sobre as escadas, sempre muito langorosa e lírica. A família não ficou assim tão preocupada, não havia nada a fazer (mas depois disso a minha mãe prestava mais atenção às garrafas esquecidas ao pé de mim).
A noite acabou no entanto de uma forma brilhante. Eu e a mãe fomos dormir a casa da tia, que por sua vez morava no mesmo prédio que o rapaz. Sei que eram umas três da manhã e batem à porta, alguém me veio chamar, era ele (talvez por ser noite de festejos ninguém achou isto demasiado estranho). Eu já tinha metido a cabeça debaixo da torneira e estava deitada. Levantei-me de um pulo, vesti qualquer coisa e fui para a varanda ver o que ele queria. A varanda dava para o rio, que seria uma coisa boa e romântica caso o rio em questão não fosse o Leça, e ele veio para mim com uma conversa mole, casual, lânguida. Acabou por contar como gostava da Celine Dion (que eu adorava, perdoem, é da idade), que gostava de uma canção em especial, que mesmo não recordando hoje qual era, sei que era também a minha favorita (suponho que a coincidência fosse da responsabilidade da irmã, que lhe dava informações privilegiadas). Fiquei muito lamechas (pudera, depois do dia que tinha tido), mas a coisa, mesmo assim, deu em pouco. Creio que nos abraçamos. No outro dia fui a primeira a acordar (oito da manhã, sem pingo de mal estar) e levantei-me para ver os bonecos na TV, porque era fim-de-semana.
Muito mais tarde a paixão passou, ou melhor, trespassou-se para a paixão anterior (igualmente mal sucedida). Mais tarde ainda, numa manhã indiferente (quando já nem me levantava cedo para ver os bonecos), estando a fazer qualquer coisa e com a TV ligada no programa do Goucha (ainda na RTP), ouço-o apresentar uma nova Boys Band do norte, olho para a TV já meio a tremer e os meus receios confirmaram-se. Lá estava ele, era o mais dinâmico dos cinco (equivale a dizer que era o mais totó) a fazer charme para a Sónia Araújo (essa sonsa que mais tarde me voltaria a atormentar). Alguém me recortou uma entrevista com eles no JN, ainda a guardo à laia de recordação. Faz-me sempre lembrar daquelas outras pessoas.
Ficou algo longa, mas aqui está (quase) história da minha primeira bebedeira.
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