7 de setembro de 2010

O homem que chora

Esta rua é tranquila e viva, à sua maneira. Tem esplanadas várias sempre cheias de gente Existe muito comércio e algum  raro em Lisboa, como uma casa de penhores, uma casa de fazer tabuletas e outras mais já em desuso. Todos os habitantes, mais ou menos, nos conhecemos.
 À noite acalma de todo . Excepto pelo senhor que grita. Todas as noites à mesma hora passa, de voz entaramelada pelo álcool e  expressando todo o vocabulário vernáculo que sabe. Insulta geralmente a "minha mãezinha" (a dele) e adora que o tentem reprimir e lhe dêem troco.  "Olhe as crianças" dizem, "quero lá saber,"responde ele .Volta e meia senta-se numa soleira e desata a chorar. Alto, angustia ouvi-lo. " O que me importa " está ele a dizer agora, enquanto uma vizinha lhe diz" xiu".
Às vezes quando saio de casa muito cedo, encontro-o, exausto de tanto gritar, volteando pelo espaço. Não sei de onde lhe vem esta raiva e tristeza toda, tão matemática na hora e local. E porque escolheu esta rua. Não mora aqui. Estou a escrever e a ouvi-lo. Mas não se esgota, voltará amanhã e depois de amanhã.



Foto de: JJosef Koudelka
Josef Koudelka
RUSSIA. Moscow. 1998.

11 comentários:

Gina G disse...

Rua José Falcão, certo? O homem não sei quem é mas o comércio como descreve veio-me logo à ideia essa rua lisboeta.

Gina G disse...

T:

Se achar por bem não publique o meu anterior comentário a este post.

T disse...

Gigi, não tem problema nenhum:) O homem não passa por sua casa também?

Gina G disse...

Não, que me lembre. :)

Conheço muita gente... esquisita, vá, na zona mas um como este não.

Luísa disse...

A T, de vez em quando, traz umas histórias tão tristes... fiquei com vontade de abraçar o homem que chora...

T disse...

Temo também a senhora cega que bate às pessoas com a bengala, risos.

T disse...

Ele é ainda novo Luísa, mete muita impressão. Já estive a dar voltas em como o encaminhar.

Luísa disse...

As freiras com quem morei em Lisboa costumam dar comida a alguns homens com necessidades. Havia dois que eu via com mais frequência. Um era muito calmo, sempre muito limpo, deu-me sempre a impressão que ele tinha onde viver, mas não tinha dinheiro para comer. Tinha um olhar de solidão, que só de pensar nele me vieram as lágrimas aos olhos. O outro, à hora de almoço, era de uma educação extrema, notava-se que era mais agitado por dentro, mas nunca criou problemas a ninguém. À noite, quando eu ia tomar café ali ao Luanda ou ao Centro Roma, apanhava cada susto com ele. Uma bebedeira tão grande, que ainda hoje pergunto como é que ele se segurava em pé, e tão ordinário, tão vulgar, com uma raiva na voz que eu tinha medo dele, ainda que fosse mulher para me defender daquele corpo ébrio. Mas quando via alguma freira, tinha vergonha do estado em que estava, escondia a cara e pedia perdão. Para no dia seguinte repetir tudo outra vez...

Quando eu puder dou uma palavrinha às freiras. Elas, coitadas, não poderão fazer nada neste caso, mas pode ser que tenham uma ideia ou saibam de alguém, alguma coisa nas imediações (de Roma a Arroios também não vai uma distância assim tão grande) e depois eu digo-lhe. É que estas histórias mexem muito comigo, pois nunca sabemos o que está por trás disto tudo...

Branca disse...

A propósito de figuras da zona: conhecia/lembra-se do Fernando, um louco alto, forte, de quem as vendedeiras do mercado tomavam conta?
Louco, às vezes agressivo, mas de vez em quando muito doce com quem o conhecia...

Enfim, todas as zonas têm as suas figuras. O homem que fechava todas as portas dos prédios que estavam abertas e descompunhava quem as tentava abrir, o cigano escuro, escuro, tão sujo e barbudo que nem se lhe via a pele, apenas dois olhos muito, muito azuis...

E não é que, quando desaparecem ,quase lhes sentimos a falta?...

T disse...

Tenho ideia dele sim. Era assustador mas não fazia mal a ninguém.Ou pelo menos a mim nunca fez.

almariada disse...

ah, sim, tudo isto é, ao mesmo tempo, triste e salutar: ainda há espaço na rua para a verdade não convencional...

talvez me pudesse explicar melhor... mas haverá bons entendedores...