4 de junho de 2009

O Vagabundo na Esplanada

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Nas caras, descompostas pelo desorbitado melindre, havia o que quer que fosse de recalcada, hedionda raiva contra o homem mal vestido e tranquilo, que lia o jornal na esplanada.
Um rapaz aproximou-se. Casaco branco, bandeja sob o braço, muito senhor do seu dever. Mas, ao reparar no rosto do homem, tartamudeou:
– Não pode...
E calou-se. O homem olhava-o com benevolência.
– Disse?
– É reservado o direito de admissão – tornou o rapaz, hesitando. – Está além escrito.
Depois de ler o dístico, o homem, com a placidez de quem, por mera distracção, se dispõe a aprender mais um dos confusos costumes da cidade, perguntou:
– Que direito vem a ser esse?
– Bem... – volveu o empregado. – A gerência não admite... Não podem vir aqui certas pessoas.
– E é a mim que vem dizer isso?
O homem estava deveras surpreendido. Encolhendo os ombros, como quem se presta a um sacrifício, deu uma mirada pelas caras dos circunstantes. O azul-claro dos olhos embaciou-se-lhe.
– Talvez que a gerência tenha razão – concluiu ele, em tom baixo e magoado. – Aqui para nós, também me não parecem lá grande coisa.
O empregado nem podia falar.
Conciliador, já a preparar-se para continuar a leitura do jornal, o homem colocou as moedas sobre a mesa, e pediu, delicadamente:
– Traga-me uma cerveja fresca, se faz favor. E diga à gerência que os deixe ficar. Por mim, não me importo.

Manuel da Fonseca, O Vagabundo na Esplanada (excerto)

14 comentários:

T disse...

Eu acho que conheço este senhor!

teresa disse...

Não me parece!... mas como o mundo é tão pequeno...:)

T disse...

Estranho. aA cara dele é-me muito familiar.

teresa disse...

Este senhor foi fotografado na vizinha "Espianha":)(espero que não espreite o "Dias", pois não foi solicitada autorização de "postagem"):)

T disse...

Risos. Mas continuo a achar familiar.

C. disse...

O post é muito bom. Como forma de dizer que "desalinhado" não significa necessariamente estúpido. A inteligência deste "vagabundo" faz certamente falta à "inteligenzia" deste país. Que diz respeitar a diferença...Ó céus!

teresa disse...

Concordo, C., sendo o mérito do escritor Manuel da Fonseca. O texto é marcante e dá razão aos antigos filósofos: as verdades devem ser ditas de modo "não gritante", pois o excesso de "paixões da alma" tira-lhes a eficácia... e é isto a pedagogia:)

Assunção disse...

Simplesmente espectacular!!!!!

Luisa disse...

Conheço este senhor! Já falei com ele, até.

teresa disse...

Grata, São.
Agradece também a memória de tão simpático escritor que tive o gosto de conhecer por breves momentos, ainda hoje mantendo muito presente no pensamento (e penso que muitos dos alunos de então, pois todos eles foram especiais) tão agradável prosa:)

teresa disse...

Então a Luísa também deve ter ficado com a óptima impressão que Manuel da Fonseca sempre deixava: de uma simplicidade que marcava e um conversador "magnetizante":)

gin-tonic disse...

Manuel da Fonseca: um maravilhoso e extraoridário contador de histórias. Assim correm os dias... e tão bem que eles assim correm...

teresa disse...

... e nada melhor do que recorrer ao empréstimo de um texto como este num dia de "direito a fazer pouco ou quase nada", de acordo com os preceitos do Sr. Lafargue:)

Gin-tonic disse...

Por que havemos de hesitar quando há alguém que diz as coisas melhor do que nós?