25 de abril de 2009

De mãos dadas


As emoções que o 25 de Abril me desperta são tão controversas, que até me é difícil falar nesse assunto. Soube desde pequena que era perigoso falar mal do regime e que as consequências desse acto podiam recaír sobre as nossa famílias. Sabia que o telefone era escutado, ouvia-se o clique da patilha nitidamente quando se ligava. Que os jornais que o meu irmão escondia no sotão não eram inofensivos e que a minha mãe se assustava com isso. Sonhava com terroristas e temia que os meus irmãos fossem mortos na guerra.Fiquei assustada com a prisão da minha irmã. Vi a GNR a espancar os estudantes em 1969 em Coimbra.
Nessa época não havia lugar para dúvidas. Sabia-se a nossa posição. Outro dia no alfarrabista, lembrei-me que as revistas Panorama não entravam em minha casa e que o meu pai não ficaria nada satisfeito se visse a minha compra desse dia.
As crianças dessa época, eu tinha 14 anos na altura, viveram tudo demasiado depressa. Pouco depois presenciei o assalto às sedes do PCP e MDP entre outras. Corri de mão dada com o meu pai por entre uma chuva de balas. Anos e anos se passaram. Tudo mudou à nossa volta. E não sei que vos diga, se da tremenda alegria que senti pela libertação dos presos políticos ou o desencanto por este sistema social e político que por todos nós foi gerado ao longo destes 35 anos. Foi bonita a Festa pá, cantava o Chico. Foi de facto. Agora sinto apenas vazio, agravado pelas saudades do reconforto que a mão do meu pai me dava, homem que me deu sempre um exemplo do que é ser democrata em todos os aspectos da vida.

25 de Abril sempre, desejava-me há pouco o meu querido "chefinho" e eu apesar de tudo não pude deixar de sorrir e retribuir. Sempre.


Fotografia de Guy Le Querrec: Caxias prison. Photographs of ancient prisonners under the fascist rule. 1974.
Agência Magnum

8 comentários:

teresa disse...

Independentemente do desencanto actual, o privilégio de termos vivido esta data na "idade da consciência", é algo que sempre nos acompanhará. Sempre tentei que a minha descendência conhecesse o 25 de Abril, não só através dos livros (esses lacunares), mas também pelos relatos de vida dos mais velhos e penso ter sido uma missão cumprida . Que título marcante, o do teu post! Quanto a mim, ultrapassa a mão que o teu pai te deu , tratando-se de uma imagem que construímos na altura, os mais utópicos, a de um dia podermos acreditar numa "sociedade de mãos dadas" (uma lamechice, eu sei... sniff...). Descendo à realidade - que é o tal sítio aborrecido, mas "onde se pode comer um bom bife", como disse um dia o realizador - hoje sei que foi uma utopia e que o cepticismo é um estado de espírito directamente proporcional à idade.
Quando lembro os versos "as portas que Abril abriu/ nunca mais ninguém as cerra" não sou assim tão assertiva e penso: "só algumas só algumas!".

T disse...

A mão dada é o símbolo do meu pai apenas.De facto termos vivido tudo isso, e tu terás mais experiências ainda certamente, marcou-nos para a vida.Muitas das portas já foram cerradas sim e assusta-me o caminho que levamos. No meu trabalho eu vejo o pior da sociedade, o que está escondido e de quem ninguém quer saber. Faço-o há 21 anos e ainda não deixei de me emocionar com o que vejo. Porque acredito que quando deixar de o sentir estarei pronta para o lixo. E é isso.

teresa disse...

Penso saber o que queres dizer quando te referes "ao pior da sociedade". Trabalhei 3 anos na escola só com os miúdos mais problemáticos e, apesar de tentar andar de olhos abertos e ouvidos atentos, ganhei então a perspectiva de um "outro lado da escola", vidas tão complicadas, problemas sociais e familiares que ninguém imagina, e ainda por cima fiquei com a sensação incómoda de quase nada ter conseguido fazer. Sempre que acompanhava um miúdo ao centro de saúde ou ao centro de emprego, lá vinha a pergunta sacremental:"é a mãe?" e eu lá respondia (envergonhada, sabe-se lá porquê): "não, sou a professora"... e tantas idas inúteis à comissão de protecção, tantos telefonemas para as linhas SOS... e lembrava-me que o estágio só me tinha preparado para ensinar, pois nunca tive certificação para psicóloga, mãe de empréstimo, assistente social, etc. E como às vezes misturo as coisas, cheguei a ter por cá alunos de fim-de-semana para que pudessem conhecer um ambiente "mais leve" (talvez um disparate, pois depois a realidade esperava-os, mas acabou por ser assim).
Bom... e vou pôr fim ao muro das lamentações, pois isso nada resolve e se a opção tivesse sido outra, teria tentado trabalhar num desses colégios assépticos nos quais os meninos levam a árvore genealógica para provarem qual o "pedegree" e fazem testes de QI para serem aceites por lá:(

gin-tonic disse...

Quando por aqui colocas as capas da "Panorama", quando por aqui falas da "Panorama", sente um enorme murro no estômago.
O pai era funcionário do SNI para a parte gráfica das suas publicações. Sempre que saía um número de qualquer dessas publicações, levava um exemplar para casa. Isto durante anos a fio. Tudo se foi acumulando e começou a faltar espaço para acondicionar os outros livros.
Naquele tempo andavam homens e mulheres pelas ruas a perguntar se havia jornais, garrafas, velharias para vender.
Um dia, para arranjar o tal espaço para livros que começava, drasticamente a faltar, o pai decidiu vender ao quilo as publicações do SNI. A costela anti-regime dele rejubilou e até ajudou a fazer os molhos e a atar as cordas.
Nesse monte estavam os muitos números da Panorama, as lindíssimas capas do Bernardo Marques, outras coisas e também “As Minha Férias com Salazar”, da jornalista francesa Christiane Garnier com as fotografias do pide Rosa Casaco. Mais tarde, por curiosidade documental, comprou o livro editado pela Parceria António Maria Pereira, mas sem as fotografias do pide, o que, diga-se, faz toda a diferença.
Já o 25 de Abril há algum tempo acontecera, ainda falou com o pai sobre esse crime.
Ficaram a olhar um para o outro. Lembra-se que estavam no “João Sebastião Bar”, os bons tempos do João Sebastião Bar. Um curto silêncio que pareceu demorar séculos. O pai então diz: “ e se bebêssemos outra garrafinha?”
Beberam. Era um tinto do Redondo, ainda rótulo vermelho, ainda não chegado o tempo da moda dos vinhos alentejanos que ajudou a banalizar os vinhos alentejanos. E não só alentejanos.
Nunca mais falaram desse crime. Mas cada vez que por aqui trazes a “Panorama”, ele lembra-se… e um friozinho gelado percorre-lhe a espinha…

T disse...

A Panorama era do melhor que gráficamente já vi. E recheada com os melhores ilustradores e escritores. A perfeita iconografia do EStado Novo.
Agora vou ficar com problemas de consciência quando postar qualquer coisa de lá...:(

gin-tonic disse...

O que ele disse foi apenas o contar de uma história...
Que venham as "Panorama" - era o que faltava!
Em "A Memória das Palvras, ou o Gosto de Falar de Mim", no capítulo "O meu Compadre Bernardo Marques", José Gomes Ferreira conta o que era um artista, como Bernardo Marques, também a mulher, a Ofélia Marques, viver naqueles tempos, um Bernardo Marques que manteve com António Ferro "constantes laços de amizade íntima, se bem que os separassem convicções políticas profundas e irredutiveis."

T disse...

Moravam todos no mesmo prédio ao que parece. Embora eu não aprecie a escrita de António Ferro, acho-a demasiado rebuscada.
Relembro seempre a amizade entre o António José Saraiva e o irmão...O afecto resiste às ideologias.

Unknown disse...

Nunca esquecerei que muito pouco antes do 25 de Abril (1 mês antes?) assisti da janela do quarto dos meus irmãos a uma violentíssíma carga da polícia de choque sobre os estudantes da escola que eu frequentava.
O horror que senti... aumentou ainda mais... quando o meu olhar se fixou numa grávida, uma transeunte de ocasião, a ser espancada desalmadamente... a senhora ainda conseguiu reunir forças para se refugiar na farmácia.
Foi horrível!
DESUMANO, DESUMANO.

Pouco depois, eu fui para o estrangeiro, mas não foi por motivos políticos...