9 de novembro de 2005

A Luciah

Há um estranho pacto entre as bruxas e as coincidências.
Vêm ambas de um lado de lá do sonho.
E ambas existem mesmo sem acreditar.

Paris é uma festa.
Paris já está a arder.
Paris nunca se acaba.

Luciah encontrou-me cedo na infância, e olhei para ela como se fosse verdadeira.
Ela tinha todas as formas e mais as formas de mulher.
Parecia sempre ser uma coisa e era outra.
E mesmo essa coisa que ela era, não era ela mas outra coisa.

Luciah construía mundos e com isso construiu os meus mundos.
Dizia que Kafka era igual a Kapa, mesmo que fossem diferentes.
Que Cervantes era igual a Quixote e Sancho, ao mesmo tempo.
Falava de deuses e humanos em pé de igualdade e criava falsos deuses assim como falsos humanos que eram igualmente verdadeiros.

Luciah traz-me todos os dias notícias frescas num prato aquecido com o fogo do inferno.
Traz-me anjos, santos e bem-aventurados aventureiros.
Exemplos do que se pode ser e do que se não é.
Sonhos que enchem o mundo como o ar que se respira.

Porque gosto então de Luciah se sei que é mentirosa?
Porque não passo eu sem as suas nocturnas fábulas rotineiras?
Pior que isso: porque vou, como um dependente, à procura das falsidades de Luciah?
Talvez por ser ela que faz de mim humano.

É Luciah que me traz à cabeceira a ligeira hipótese de considerar o viver como coisa aceitável.
É ela que flutua sobre a estrutural fantasia dos textos.
É Luciah o lado de cá de eu não me sentir um mero DNA reprodutível.

Cada vez que encontro Luciah, e em que ela a seu bel-prazer me faz, com as suas artes, oscilar violentamente entre o amor e o ódio, entre a paixão e a viagem, entre o medo e a sofreguidão, entre o poder e o vácuo, entre a música e o ardor do mérito, percebo que Deus, na sua superior sabedoria, criou Luciah para dar sentido a uma obra eternamente adiada.

Luciah, campeã da ironia, há-de morrer sem revelar os seus segredos!


Ivo Cação


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