5 de setembro de 2005

About Katrina

Faz hoje exactamente uma semana que o furacão Katrina assolou o sul dos EUA. Após alguma apatia inicial, talvez por as consequências estarem dentro do esperado, o mundo despertou para a tragédia com as brutais imagens de New Orleans e as reacções não se fizeram esperar. Curiosamente, ao contrário do habitual em situações deste tipo, a maioria da opinião pública – especialmente na Europa - não se focou na solidariedade para com as vítimas e o país atingido pela tragédia mas sim em apontar os erros e insuficiências, do país e dos seus dirigentes, na prevenção e socorro às vítimas. Notou-se até, parece-me a mim, um certo tom de regojizo em muitos sectores de opinião, por o “mais poderoso país do mundo – e os seus dirigentes – não terem podido remediar ou evitar tamanha catástrofe.” As referências à famosa inépcia de Bush foram claras e motivadas, parece-me, por um certo preconceito político/ideológico. Fizeram-se analogias e inferência com a guerra do Iraque, com o incumprimento dos protocolos de Kioto, com o desinvestimentos na prevenção, com mecanismos de segregação de base racial... e muito mais, que me parecem algo descabidos.

Proponho-me, com calma, pesquisar e rever os factos:

De um modo geral:
A costa sul do EUA é atingida por mais de 20 tempestades tropicais ou furacões por ano, sendo que a sua formação e rota são seguidas ao milímetro/segundo. O investimento no estudo científico dos furacões e tornados, na construção de satélites e estações metereológicas, no equipamento de meios aéreos de monitorização das tempestades é brutal e ultrapassa, em muito, o orçamento de estado português (por expl). A rede americana de vigilância e monitorização de furacões é fundamental e dela dependem todos os países das Caraibas e América Central: já permitiu salvar milhões de vidas.
A experiência na formação e implementação de redes locais, estaduais e federais de protecção cívil é bem conhecida e já foi testada, por várias vezes, em situações idênticas: no caso do furacão Andrews, há 1 ano, foram evacuadas mais de 1 milhão de pessoas na Flórida sem problemas de maior.

No caso específicodo furacão Katrina:
Em 24 de Agosto, uma banal tempestade tropical, ao atravessar o sul da Flórida sem estragos relevantes, é classificada como furacão grau 1 (Katrina).
Em 25 e 26 de Agosto o furacão Katrina evolui no Golfo do México, progessivamente aumenta de dimensões e é classificado em grau 2 e 3. Nesse momento já é considerado uma ameaça a sua eventual entrada em terra uma situação muito perigosa.
No dia 27 de Agosto o furacão toma as suas dimensões máximas (grau 5) e é prevista a sua entrada em terra (landfall) perto a Nova Orleans (NO). As autoridades federais declaram o estado de emrgência e diversos institutos científicos aconselham a evacuação das zonas afectadas.
No dia 28 de Agosto - a menos de 24 h da chegada do furacão e não a 48/72 h, como habitual - é dada a ordem de evacução de NO pelas autoridades locais, a quem o compete. A evacuação terá sido mal coordenada: por impossibilidade de escapar ou por vontade própria, mais de 100.000 pessoas (20 a 25%) permaneceram em NO, bastante mais que os 10% inicialmente estimados. O risco dos diques de protecção de NO romperem era real e elevada: não era uma questão de falta de reforço – era impossível reforça-los em 3 a 4 dias –, a questão era que os diques foram construidos para suportarem ventos e cheias associadas a um furacão grau 3.
Por volta das 6 da manhã de 29 Agosto, o furacão Katrina faz o landfall, mais a este e mais longe de NO que o previsto, descendo ao fim de algumas horas para grau 4 e 3. As primeiras impressões das autoridades locais é que os efeitos não eram os esperados e pensa-se que as medidas de evacuação tinham sido exageradas.
No dia 30 de Agosto, apesar das dificuldades de avaliação dos estragos reais normais nestas situações - vôos impossibilitados pelo vento/chuva e radares avariados - tudo apontava que o pior já tinha passado: muitos habitantes saem dos seus abrigos e as forças de segurança e socorro começam o seu trabalho local.
Só na noite de 30 para 31 de Agosto, ocorre a quebra dos diques o que leva a uma inundação macissa de NO. A maioria das pessoas que permaneceu na cidade é apanhada desprevenida, fica encurralada nos sotãos e telhados das casas, fica sem provisões... Não existe água potável nem electricidade e o trânsito automóvel é impossível. Pelos mesmos motívos, em 31 de Agosto assiste-se ao aparente colpaso das forças de segurança e emergência locais. Torna-se claro que NO é uma zona de catástrofe total mas, no resto do mundo, a atenção é ainda reduzida – o show mediático só viria no dia seguinte.
Depois de 2 dias (1 e 2 de Setembro) de completo caos em NO, de descoordenação entre os diferentes niveis de autoridade e de declarações públicas intempestivas, mobiliza-se a guarda nacional do Estado, reorganizam-se as forças locais de socorro, inicia-se a recolha de sobreviventes espalhados por toda a cidade e a completa evacuação de NO para as cidades e estados limítrofes. Em 2/3 dias montou-se uma enorme ponte aérea/terrestre que permitiu transportar cerca de 100.000 a 150.000 pessoas presas em NO.
Esta é a situação no momento. Falta contabilizar os mortos e quantificar os estragos... e, ou muito me engano, passado o afã mediático sobre NO, vir-se-á a descobrir que o cenário no sul do Missippi é muito pior.

E então, o que é que se passou neste caso específico do furacão Katrina... qual a minha percepção? Houve uma má conduta das autoridades? Falharam os básicos mecanismos de vigilância, prevenção e socorro?
Não sei, é difícil de dizer... Que existiram erros, parece-me claro: a ordem de evacuação de NO podia ter sido dada 24 h mais cedo e devia ter sido melhor coordenada; o cenário de colapso dos diques devia ter sido melhor equacionado, os hospitais em risco evacuados, e o desvio de pessoas ser feito para zonas a salvo das cheias; o auxílio estadual/federal podia ter chegado mais cedo – 24 horas, talvez? – mas não podia estar lá, ou teria sido varrido como as estruturas locais.
...mas, apesar de tudo, gostava que, se um dia me visse numa situação destas, o auxílo fosse, pelo menos, tão célere com o foi nesta situação.

Finalmente, acho que muito do que por aí se diz, da “má” resposta das autoridades americanas, revela uma reacção emocional às imagens chocantes que nos foram atiradas à cara: no fundo, percebemos que podiamos ser “nós” a estar ali, que não estamos imunes à catástrofe, ao caos. Revela também alguma ignorância quanto ao grau de destruição que um furacão desta magnitude provoca e o desconhecimento das consequências da total e súbita disrupção das estruturas básicas de sobrevivência, numa cidade de meio milhão de habitantes. Revela, por fim, o tal preconceito “anti-governo americano”.

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