19 de julho de 2010

Loucos de Lisboa...

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O quotidiano transporta-nos através de diversas ruas da memória, dado ser também dela e com ela que são percorridos alguns trilhos do presente.
Após tentativa de reencontrar o «Sol», simbologias à parte, dado a referência se destinar ao restaurante propriamente dito onde, durante tempo considerável, se podia matar a sede com maravilhosos sumos de maçã/cenoura feitos no momento e saborear refeições vegetarianas por preço mais do que aceitável, surgiu a descoberta de ter sido o local convertido em restaurante panorâmico com direito a fados e jantares. Dando continuidade a uma deambulação em busca de almoço ligeiro para um dia de calor, a escolha caiu na antiga pastelaria Carmelita: encontravam-se livres as poucas mesas de exterior, podendo-se optar por simples salgados (não oleosos) de ar caseiro, acompanhados de viçosa salada.
Após breve permanência no local, acontece a primeira abordagem: uma jovem mulher de dificultoso português a querer vender o Borda d’Água ou, em alternativa, um leque de madeira rendilhada Made in China. O empregado – ainda não reformado e cuja fisionomia recordo de época a.I. (antes do incêndio) – acorre em defesa da clientela «não incomode e deixe as pessoas almoçar em paz». Digo então à “vendedora” que lhe darei uma moeda sem nada querer em troca, enquanto a vejo diluir-se Rua do Carmo acima.
Aproxima-se um homem de aparência vagamente jovem e fisionomia reveladora de deficiência. Suplica por «um cafezinho», qual tuaregue em desespero de oásis... Nesse preciso momento, já a M. me lança reprovador olhar traduzido (em lingua ‘maternês’) por um «mãe, tens de pôr fim a isto»… lá digo ao rapaz que entre e peça a sua urgente dose de cafeina, olhando para a minha filha com o ar enérgico (possível, atendendo à canícula) de «a mãe aqui sou eu!». O empregado, fazendo coro com a miúda, diz-me da porta da pastelaria «o rapaz é visitante habitual, não poupa os clientes que por aqui vê sentados... mas se dizemos “sim” a todas estas pessoas, ficamos mais pobres do que elas» (devolvo-lhe um pálido sorriso sem verbalizar)… Depois do café (com dois pacotes de açúcar, pois estamos frente a frente com a montra a separar-nos) o homem, de idade indefinida, volta ao exterior para dois dedos (talvez mais) de conversa: «obrigado, menina, muito obrigado, mesmo!» - aperta-me com força o braço enquanto agradece com um riso escancarado a mostrar os dois únicos dentes no maxilar superior. Ainda decide ficar por perto, tecendo observações sobre a nossa acertada escolha, embora «os pastelinhos de bacalhau liguem melhor com batatas fritas… tudo sabe melhor com batatas fritas… é a sua filha? Menina simpática…» .
Finalmente afasta-se, deixando-nos às duas a tentar pôr ordem numa súbita e incontrolável vontade de rir... Viajo subitamente no tempo, lembrando dois apontamentos junto à Av. do Brasil local onde, pouco mais velha do que a M., passava diariamente. Os pacientes do hospital próximo pairavam através do passeio a cravar cigarros (curiosamente, o termo ‘cravar’ é datado) ; evoco ainda um amigo do meu pai que, morando perto da instituição de saúde, foi um dia «cravado» por um destes pacientes com direito a pergunta adicional: «quantos são vocês cá fora?» - este «cá fora» destinava-se aos cidadãos que com ele não partilhavam o espaço hospitalar…

4 comentários:

T disse...

Estou a ver o filme, risos:)

teresa disse...

A M. 'passa-se' com estas coisas:)

Luísa disse...

E eu faço coro com a M.. De vez em quando abro uma excepção, mas mesmo muito rara (quando mete crianças e me pedem comida, vou com a criança comprar). Eu não tenho medo de ficar mais pobre por dizer sempre que sim. Simplesmente os necessitados não têm uma marca para os diferenciar dos malandros. E, pagando o justo pelo pecador, eu não sustento malandros... Prefiro gastar no Bano Alimentar, ou dar para as miúdas que as freiras, com as quais vivi durante 12 anos, ajudam com muita dificuldade (é que as miúdas precisam desde a roupa aos livros, dos medicamentos aos pensos higiénicos e as freiras... vivem da caridade das pessoas e de parcas ajudas do estado).

teresa disse...

Apesar do post concordo com a sua atitude, Luísa. Ainda uma semana antes destes acontecimentos se passou algo de muito lamentável, com a pessoa que pedia(não se duvidando para que fim) a entrar quase colada 'restaurante dentro'... Quanto ao Banco Alimentar - no qual já colaborei na recolha - nem imagina a perspectiva de quem está a receber os géneros: pessoas de ar necessitado a colaborarem generosamente e outras (sem querer generalizar, é certo) de ar 'próspero' a aceitar, com um sorriso, os sacos e a largá-los pelas prateleiras do supermercado (depois procedemos à recolha de dezenas de sacos vazios). Há ainda os que 'passam ao ataque' a dizer: "esta coisa do banco alimentar é para roubarem depois os géneros"... limito-me a não responder a insultos ou, quando a energia lá está, a explicar com a calma possível e a tentar sorrir ... acredito que na maioria as coisas cheguem ao depósito de Alcântara, caso contrário não estaria presente nestas iniciativas.