24 de setembro de 2005

O guarda - freio...



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Se há alguém digno de ser apontado como o arquétipo do velho polícia à portuguesa, o Lisboa foi, sem sombra de dúvidas, um dos seus legítimos representantes. Dotado de um proeminente ventre, legado de um passado boémio e bem regado, avesso a grandes desmandos de cultura do físico, fruto de uma incorporação dos finais da década de sessenta de mil e novecentos, este colossal cívico, versão portuguesa do Bud Spencer, era uma presença que só por si impunha tanto respeito quanto 10 homens ditos “normais”. O tipo era mesmo uma “besta”. Faça-se justiça e acrescente-se a estes atributos humanos, mais discutíveis nos dias de hoje que à época em que foi repescado à tropa ultramarina, que Lisboa era mesmo um Homem com “H” directamente proporcional às suas dimensões. Um rapaz daquele tamanho só podia ter um coração condicente com o seu físico e ele era a prova disso. Amigo do amigo, espírito de serviço cívico, sempre pronto para ajudar o oprimido, pautando a aplicação da Justiça e reposição da ordem segundo princípios muito personalizados. Não são poucas as “palmadas” distribuídas a colegas requisitados pela DGS ou episódios nunca bem esclarecidos por Agentes da polícia política misteriosamente mimados por ele quando em acto de serviço de duvidosa justiça. A Justiça "injusta" para ele não contava e talvez seja ele um dos muitos que também lutou contra o sistema pré-revolução, à sua maneira, o que prova que os “chuis”, ao contrário do que ainda se tenta fazer passar, não eram uma maioria de colaboracionistas, mas isso são outras estórias que ficam por contar.

A mais célebre e verídica história do Lisboa é deliciosa, quando ouvida por contemporâneos seus. Conheci-o já nos seus últimos 10 anos de polícia e nunca foi de cantar os seus feitos ou gabar-se das suas tropelias.

A primeira actividade pública do Lisboa passara pelo serviço na Companhia Carris de Ferro, como guarda-freios. Depois do serviço militar, decidiu-se a trocar a monotonia dos carris pela maior mobilidade da patrulha policial. Lisboa foi para a rainha das Esquadras de Lisboa, a emblemática Esquadra do Bairro Alto. Consta que certo dia, tinha ele saído de serviço e decidira ir ao Cais do Sodré para tomar um eléctrico para Santo Amaro. Para sua surpresa, na paragem, encontrava-se àquela hora, um número anormal de passageiros que aguardavam o carro. De certeza que algum automobilista deixara o carro mal estacionado algures e impedia a passagem do amarelo. Não demorou a constatar as suas conjecturas. A pouco mais de cinquenta metros dali, via-se um magote de gente em volta do "almanjarra" – com publicidade à Sandeman, imagino – e não um, mas dois veículos estacionados à frente deste. Conseguiu ver também o guarda-freio, bem como dois colegas seus que tinham acabado de sair de um “carocha-nívea”. Os cinzentos estavam ali e não faziam nada mais que acalmar a populaça indignada. Temendo mais chegar tarde ao seus destino que pela segurança dos seus camaradas (nestes tempos pouco se questionava a autoridade dos polícias), o nosso amigo dirigiu-se até ao local do “entupimento” da via. Lá estava o funcionário dos transportes a lamentar a sua sorte, a populaça indignada com os descuidados automobilistas e os polícias a tomar notas. Olhou demoradamente para o eléctrico e para os carros em infracção. Voltou-se para o seu ex-colega da Carris e disparou:

- Então a “avantesma” avariou, é?

- Avariou nada, Sr. Guarda. Os palhaços que deixaram os carros estacionados aqui é que não deixam passar – respondeu o guarda-freio.

- Hum! Será que não passa – voltou o Lisboa enquanto subia para o posto de condução.

Os poucos anos, que andara agarrado àqueles comandos, tinham-lhe dado a experiência necessária para se aperceber de imediato que o carro passava. O condutor é que estava a “empastelar” por birra ou por outro motivo qualquer, que pouco lhe importava.

- Olhe que passa e passa bem – disse ao guarda-freio.

- Olha agora este! Quem diz se passa ou não passa sou eu. Meta-se naquilo que sabe – retorquiu o funcionário crescendo com os seus raquíticos 60 kg contra os mais de 120 do cívico.

O teimoso guarda-freio teve talvez um anjo da guarda que nesse dia o impediu de ser pulverizado por uma marretada de punho digna do martelo de Thor. Lisboa, sobe novamente para a roda de comando, destrava o eléctrico e diz então à multidão:

- Quem quiser vir, é entrar agora, que vai arrancar…

- Vou participar de si – ameaçou o guarda-freio em valoroso contra-ataque, tentando afastar o polícia dos comandos da máquina. Porém, ao tentar fazê-lo, o pobre coitado escorrega, cai e bate com a cabeça no varão de entrada perdendo a consciência. O Lisboa agarra no tipo, senta-o ao lado de um passageiro e determina aos colegas que escoltem o eléctrico até à sede da Carris.

- Última chamada; quem quiser entrar, entre agora, que isto só para em Santo Amaro

E o eléctrico lá passou… directo a Santo Amaro.


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