14 de agosto de 2005

A QUEIXA...

Ao longo dos 18 anos que levo já no mister, confirmei o que a vida sempre me ensinou: o Homem é um ser individual e ele próprio cria regras que muito dificilmente consegue fazer cumprir na sua totalidade. Mesmo os que estão mandatados para tal tarefa, são os primeiros a transpô-las, quer seja por imunidades ou regras especialmente criadas para si e seus pares, aquilo que convencionalmente se chama excepções ou então pelo simples puxar dos “galões” da autoridade, condição social e económica. Os privilégios, isso a que alguns chamam injustiças, são realmente injustiças, pois, no seu universo das benesses, elas são na realidade injustiças porque são resultado de distorções e do desvirtuamento das regras sociais e democráticas. Como temos sempre tendência ao julgamento do todo, esquecendo a especificidade inerente a cada privilégio, ignoramos precisamente a parte, diluindo-a nesse mesmo todo, caindo no erro da generalização. Cada vez mais, no mundo cada vez mais acelerado pela globalização, temos tendência em generalizar cada vez mais as coisas de forma a simplificar o processo de manifestação da revolta, facto que deixa imenso espaço de manobra à injustiça da análise colectiva aos assuntos que realmente nos preocupam. Assim, cada vez mais a generalização da análise sobre qualquer tema se tornou uma banalidade, ferida da falta de capacidade de olhar os problemas de forma menos global em detrimento da individualização de esses problemas. Está bem patente este facto na actual discussão em torno das reformas em curso levadas a cabo pelo governo actual. Este pensar globalizado, que tantas dificuldades tem em se impor e fazer impor as regras que produz, consegue contudo reflectir-se na sociedade e nas várias componentes que a formam. Aponto aqui as Instituições do Estado e nelas, claro, aquela que sirvo, sim sirvo, porque por mais que me digam o contrário, não abdico do direito de dizer que existo para servir os outros, mesmo sendo remunerado por isso.

São diversas as razões pelas quais se abraça uma profissão. Eu, falo por mim, tal como a grande maioria, alistei-me nos quadros da polícia por ver ali uma forma de garantia no emprego; o resto, são tretas e excepções à parte – louváveis diga-se - não há que entrar em grandes discursos de pura retórica de carácter vocacional. Vocação propriamente dita, tinha-a – e continuo a tê-la – para servir em agremiações do género escuteiros, clube de bairro ou nas rádios piratas, como há uma vintena e tal de anos eram designadas as emissoras locais que surgiram em força. Mas descobri, depois de ter começado a viver dentro do meu “novo mundo”, que podemos aprender a gostar de fazer algo para o qual fomos “empurrados” devido às circunstâncias da vida, sem ter de, assumida que é uma escolha passar o resto do tempo perdido em lamentações acerca dessa mesma vida ou em protestos inócuos, silenciosos e anónimos, desprovidos de alternativas ou soluções. Houve homens e mulheres que me marcaram na sua atitude perante a forma de encarar a profissão e da personalizada maneira de colocar em prática o exercício da autoridade investida de forma personalizada e adequada às ocorrências com que se deparavam dia-a-dia, moldando as leis e regras consoante a situação assim lhes exigia que actuassem.

Um desses homens, ao qual tanto tenho de agradecer ter-me aberto os olhos para tanta coisa já não faz parte dos quadros activos da Corporação mas passarei a referir-me a ele simplesmente por Toni como sempre foi conhecido pelos seus camaradas e amigos. Não que ficasse aborrecido com isso, tanto mais que a sua frontalidade e forma de encarar a vida nunca lhe permitiriam tal coisa, mas prefiro mantê-lo no recato do seu diminutivo em alternativa ao seu apelido. Durante cerca de 10 anos, estivemos presentes em inúmeras acções, algumas delas bem complicadas, algumas das quais aqui relatarei em futuras crónicas, mas há uma, a qual não assisti, mas que é contada pelos mais antigos da casa, como se de uma lenda viva se tratasse à guisa dos épicos de outros tempos e que mostra a capacidade de improvisação e de encarar a justiça, adaptando-a às circunstâncias. Digamos que é uma forma “personalizada” de fazer as coisas, sem prejudicar ninguém e manter acesa a sanidade mental ao longo de tantos anos a conviver com episódios de fazer perder a paciência a um santo.

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Toni, temperado pela revolta dos que subiram na vida a pulso, contra tudo e contra todos, tinha entrado de serviço de graduado na complicada Esquadra da Boavista, ali bem próxima dos Bares da Rua Nova do Carvalho – Cais do Sodré – feudo reconhecidamente estabelecido da “fina flor” do basfond e vida boémia da capital. Seria uma noite, como a maioria das noites, passada a martelar na velha MESSA contra as sanduíches de papel com químico, queixas e relatos das mais variadas, mas sempre rotineiras, cenas de pancadaria, disputas entre chulos, putas e ébrios clientes do perímetro. As caras, tal como as situações, eram quase sempre as mesmas e na hora de passar ao papel, as identificações saltavam para os formulários de memória.

A noite corria calma, quando a meio do turno, a sentinela anuncia a chegada de uma conhecida “vítima” das ninfas estacionadas nas esquinas do Cais. Toni manda entrar o reclamante e este, entorpecido pelos vapores etílicos do ambiente que deixara e ferido no seu orgulho pela situação que o trazia à Polícia, projecta-se pelo hall de entrada da esquadra como o fazem os velocistas sobre a linha de meta. Resultado, aterrou literalmente sobre o banco da sala de espera, especialmente construído segundo padrões de resistência condicentes com a clientela habitual do espaço. Nem precisou da ajuda da sentinela; a entrada tinha sido em grande estilo e, caso raro, voluntária. Quem não gostou nada da artística entrada foi o Toni, que nem precisou de sentir os vapores de álcool ou de um alcoolímetro sequer, para ver que estava perante um garrafão com pernas. Era um utente habitual, quase “visita de honra” da casa. Ficou ali estarrecido a mirar o “cromo” até que este, após recuperar o fôlego, se dignou a balbuciar:

- A puta da Marinita fodeu-me a carteira.

- Ora, ora. E tu não lhe querias foder a crica?

- É para isso que ela lá está, não é?

- Pois pagas e serves-te.

- Mas fui com ela para a pensão e a vaca, pirou-se. Quando cheguei cá fora, reparei que não tinha a carteira e quando fui ter com ela, o chulo dela fodeu-me a tromba.

Toni reparou então que a cara do desgraçado dava mostras de ter sido acariciada de forma que lhe começavam a aparecer umas protuberâncias disfarçadas pela barba de dias que lhe cobria o rosto.

- E então achas que foi ela quem te furtou a carteira?

- Claro que sei… estou bêbado mas ainda não bebo o juízo!!...

Como se fosse possível tal combinação – terá pensado Toni – olhando de soslaio para a carteira que um taxista tinha entregue horas antes e que dissera ter sido deixada por um ébrio que transportara ao Cais do Sodré, fazendo questão de dizer que não tinha dinheiro, só documentos. Registara a queixa contra o dono da carteira, já que o mariola, além de o ter obrigado a um longo périplo pelas zonas mais escabrosas da noite da cidade, não tinha um centavo para pagar, pelo que abandonara o táxi à entrada do Cais. A carteira era do tipo. Toni, antes de o confrontar com esta situação, decidiu aguardar até que lhe passasse a “torcida”, dirigiu-se até aos lavabos e regressou com um rolo de papel higiénico, sentou-se à secretária e mandou o queixoso aproximar-se do guichet de atendimento:

- Então diga lá, de que se trata afinal? – enquanto dizia isto, introduzia a ponta do rolo de papel higiénico na máquina de escrever – Contra quem é a queixa e porquê?

O ébrio, apesar do nível do álcool lhe toldar a maioria das faculdades motoras e intelectuais, teve um rasgo de lucidez e indignado, ao ver a acção do graduado protestou, com o ar mais ofendido que a mais séria das pessoas ofendidas.

- Oh chefe, que é isso… vai escrever a queixa no papel higiénico!?!?... Sou alguma merda?

Sem deixar de o olhar nos olhos, Toni, com a maior das descontracções, com toda a calma do mundo – não valia a pena perder tempo com tipos destes – fez uma pausa e replicou – Claro amigo… vou aceitar-lhe uma queixa de merda…

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