3 de dezembro de 2003

A propósito de nada

De repente descobriu-se que faltam centenas de médicos, que nos próximos anos faltarão milhares, que todo o sistema nacional de cuidados de saúde está em risco de colapso, e que são precisas mais faculdades e muitos mais alunos de medicina. E parece que tudo isto foi descoberto de repente, como se nos últimos anos tivesse acontecido algum cataclismo.
Como de costume, os dados conhecidos são insuficientes e confusos. Como de costume, servem qualquer opinião.
Ora desde que sou médico, e já lá vão mais de uma dúzia de anos, todos os anos cresce o número de médicos, em todo o lado: não houve, nem haverá nos próximos anos, nenhuma diminuição real. E este aumento não ocorre, como se faz crer, exclusivamente à custa de médicos espanhóis: eles ainda são uma minoria, apenas amplamente visível por fazerem o trabalho que mais ninguém quer, os balcões das urgências.
Também nestes doze anos melhoraram, de forma notória, os meios à disposição da prática de medicina. Quer as instalações hospitalares, quer os equipamentos técnicos.
Mas é um facto que, em muitas áreas, a qualidade dos serviços prestados não melhorou de forma proporcional ao aumento do número de médicos e da melhoria dos equipamentos. Persistem as listas de esperas para operações banais, persiste a dificuldade de acesso a diversas consultas, as urgências continuam caóticas.

Em minha opinião isto reflecte, essencialmente, a nossa falta de saber organizativo, em três campos distintos, mas que se complementam. E que se devem melhorar:
Melhorar a organização da circulação dos doentes no sistema. Melhorar, desta forma, quer os miseráveis cuidados de saúde pré-SNS (lares, instituições, escolas, familias...), quer o acesso a consultas de cuidados primários e secundários, afastando, ao mesmo tempo, os doentes das urgências.
Melhorar a organização da distribuição médica. Isto implicaria melhor distribuição regional (forçando a mobilidade médica), melhor distribuição por especialidades (forçando que a formação, nos internatos, não se faça ao sabor de vaidades locais) e melhor distribuição dos médicos intra-instituição (forçando que, nas funções individuais, prevaleça o interesse comum sobre a conveniência pessoal).
Melhorar a organização da actividade médica. E é aqui que estará o maior problema: a quase total incapacidade dos médicos organizarem o sua actividade diária, a muito precária comunicação inter-pares, a quase nula capacidade de gestão de equipas (médicas e de outros profissionais). Para o trabalho de um, são precisos dois ou três.

E é esta a minha opinião.
Parece-me que, com os actuais contigentes de alunos em formação, o número de médicos será um problema menor.
Parece-me demagógico catalogar esta opinião como corporativista.
Assim como me perece demagógico realçar as guerrinhas de capelinhas dos pediatras lisboetas, como se traduzissem todos os males do SNS.
E estranho que se continue a esquecer a falta, essa sim grave e real, de outros profissionais de saúde: enfermeiros, técnicos de diagnóstico e terapêutica, paramédicos, etc, etc..

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