29 de agosto de 2019

Bacurau, Brasil


Bacurau (Brasil, 2019, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles) é o filme brasileiro que deve fazer Tarantino se perguntar “Como não fui eu que fiz”? Há nele uma história densa, de um Brasil profundo e real. Daquele Brasil que Glauber Rocha encontrou com sua câmera nervosa no sertão nordestino do Século passado. Ou, que Nelson Pereira dos Santos gravou com poesia árida, no mesmo sertão brasileiro. Mas tem mais. Não há luxo em identificar traços de Hitchcock, nem exagero em perceber suspense extraído da mesma fonte onde bebeu de John Carpenter.

Não é pouco, portanto. É muito e isso é bom.

Ele estreia nesta quinta-feira, 29.08, nas telas nacionais. Dias atrás, consegui vê-lo em pré-estreia. Por um lance de sorte. O meu tempo não coincidia com o das sessões do filme que originalmente planejava ver na noite de sábado. Para não perder a viagem passei os olhos nas alternativas e percebi que ainda havia uns poucos lugares, nas fileiras que ficam quase embaixo da tela, para a sessão de Bacurau, a primeira a ser exibida no Cine Cultura, aqui em Brasília.


Lá fui eu, sem saber o quê esperar de fato. Havia um frio em minha barriga. Pelo que já tinha lido, pelo resultado em Cannes, pelo receio do que veria. Esse tempo de incertezas faz a descrença virar sombra da gente. Mas já nas primeiras cenas fui seduzido por um roteiro porreta, uma direção ao mesmo tempo bruta e delicada e uma história que me sequestrou do mundo lá fora e me fez embarcar de corpo e alma na viagem para Bacurau. 

Bacurau é um lugarejo qualquer na imensidão de terra seca do Nordeste Brasileiro. O sertão que leva a Bacurau é muito parecido com o sertão de Big Jato (Brasil, 2016, direção de Claudio Assis), outro filme que carrega a brutalidade poética nordestina sem filtros (e que merece ser visto, caso o leitor ainda não o tenha feito). Há semelhanças e diferenças.

Um caminhão, por exemplo. 

O limpa-fossas, de Big Jato.  

Em Big Jato, o caminhão que trafega em meio à paisagem árida é um limpa-fossas, que recolhe esgoto dos outros, enquanto espalha odor de merda na vida de um pai que varia entre a honra do trabalho e a descrença na poesia da vida. Junto do pai, na boleia do caminhão, um filho adolescente cuja vivência oscila entre a rudeza do pai e a alucinação poética do tio. O menino tempera a merda da vida que leva com o cheiro perfumado da poesia.  

O caminhão de água potável, na entrada de Bacurau.
Foto: Divulgação, internet.  
Em Bacurau, o veículo inicial é outro. Não por acaso, é um caminhão de água potável que, além de matar a sede do povoado, traduz um ponto de referência, uma preciosidade do local. Traz água mas também traz notícia e traz gente. Nele, uma mulher volta à sua origem para viver o velório de sua avó, uma líder negra local (interpretada por Lia de Itamaracá). Ela tem emoção nos olhos e remédios na mala. Ela é filha de um professor, negro, digno, envolvente, visionário. Bacurau é um lugarejo onde a escola e o museu ganham importância maior que a igreja.  Big Jato é utopia. Bacurau é distopia. 

Cena do filme Bacurau
Há um latente espírito de solidariedade e tolerância entre os locais. A pobreza e o isolamento não são motivos para ignorância. O povo ali retratado tem o que virou moda chamar de “inteligência emocional”. Divide as mazelas, se identifica na dor e na alegria compartilhada. A vida no sertão não lhe tira o humor e espanta qualquer sentimento de menos valia. Em resumo, aquela gente é símbolo de resistência já cantada em verso e prosa. Por Luiz Gonzaga ou João Cabral de Melo Neto. Por Suassuna ou Guimarães Rosa. 

Lunga, o herói bandido ou bandido herói é digno da personalidade ambígua. É um lampião trans. Nem super-homem, nem mulher maravilha. Volta da reclusão para ajudar seu povo a resistir a uma invasão gringa. Nas palavras do professor (da cidade que não tem padre) ele não devia parar de escrever. Em Bacurau, Lunga reescreve sua história com suor e sangue. E ajuda a cidade a não sumir do mapa. Melhor, ajuda a cidade a ser o que é. 

Bacurau é sertão e é Brasil. Quem não viu precisa enxergar.  

Kleber e Juliano. Os diretores.
Foto: Divulgação
PS.: Não é preciso falar do vigor da música de Geraldo Vandré, da grandeza da imagem de Sônia Braga, nem da vitalidade dos atores anônimos que dão corpo ao filme. 



20 de agosto de 2019

O tempo por testemunha

Cora Coralina
Faz cento e trinta anos, nasceu uma menina bem por ali, pelo sertão de Goiás, no coração do Brasil, num lugar onde o tempo se encarregaria de transformar cidade em sinônimo de poesia.  Faz cento e trinta anos. 

Não havia, naquele tempo, quem previsse se ia chover ou não. Não havia mais do que o barulho de pássaros anunciando a manhã e o rumor do rio em movimento lambendo as pedras. 

Havia apenas a certeza de um novo nascimento. 

Faz cento e trinta anos e o tempo, testemunha desse milagre, parece não ter passado quando se pensa em poesia.  A janela da casa velha da ponte, segue aberta. Ainda dá para o mesmo horizonte que viu a menina Aninha nascer. 

De lá daquela janela, a menina que se fez Cora Coralina, segue impregnando quem quer que se aventure a lhe enxergar com o sabor doce dos seus poemas. 
Agora mesmo, nesse exato momento, como cento e trinta anos atrás. 

Tendo apenas o tempo por testemunha.