14 de agosto de 2011

Só morre quem nós deixamos afundar-se no esquecimento

"O meu melhor professor de Literatura, António Bragança, no desaparecido Colégio Almeida Garrett, do Porto, costumava contar-nos uma esclarecedora história. Um célebre escritor português, penso que Eça, estava em Paris no pino do Inverno. Lia atentamente um romance cuja trama se desenrolava nos trópicos e levando tanta caloraça no enredo que chamou o garçon pedindo-lhe um refresco gelado. Ante o espanto do empregado a ver a neve cair no exterior, a alma do livro apoderava-se do enlevado leitor que desapertava a camisa transpirando. Enquanto o relógio dava as horas habituais da parede e os cafés e croissants cumpriam o ritmo de saída de todos os dias e meses, por uma pequena friesta de umas dezenas ou centenas de páginas impressas entrava o fulgurante clima africano no café de Paris no centro do Inverno. Chora-se ao ler livros. Treme-se de medo ou de frio fora de época. Revoltamo-nos e gozamos. Sentimo-nos catapultados para países que nunca vimos e, como diria Pessoa, perderíamos se na realidade os visitássemos. E todo este trânsito se processa por intermédio de simples objectos feitos de papel impresso. É por isso que a aproximação à alma de um livro deveria acontecer como naquela história de Jean Genet na prisão. Um dia caiu-lhe nas mãos um romancista russo. Leu o primeiro parágrafo. Estremeceu. Ficou tão impressionado que guardou sob o travesseiro aquele livro durante dias, preparando-se para a sua leitura. Para depois poder partilhar convenientemente a sua alma"
In Ler / Livros & Leitores, n.° 15, Inverno 1994.
Manuel Hermínio Monteiro (1952/2001).
Fotografia retirada do Blogue da Assírio e Alvim.
O título do post é retirado dum texto deste excepcional homem da cultura portuguesa, falando da morte do grande poeta Al Berto.

1 comentário:

teresa disse...

Belo post por vários motivos:
- vem a propósito num mês em que parece querermos ler por gosto tudo aquilo que não se conseguiu ler ao longo de um ano de correrias;
- por apelar ao "prazer do texto";
- por lembrar um grande nome da nossa cultura:)

... e certamente haveria ainda uma infinidade de motivos.