6 de agosto de 2011

Alfama tão linda és

 Lá vem a Rosa de cabaz na mão. Vai levar o almoço ao pai, que trabalha na doca do Jardim  do Tabaco. Donairosa e ladina, duas rosas no  rosto e uma de um vermelho mais vivo nos lábios,
olhos negros. brilhantes e em festa como balões de Santo António, passa a trautear: '
«.Ó meu rico São Miguel
Se me dás esperança fagueira
Enfeito a tua palmeira
Para  minha lua-de-mel !...»
Ela segue e as vizinhos coscuvilheiras : Parece que o Manel da Fundição já falou com o pai dela! Olha que novidade... Até já marcaram. 0 casamento para  Agosto!.
Vai depressa, Rosinha.. O tempo voa.Olha que nas mãos calosas do pai, tão suaves quando te afagam os cabelos, há sempre um tabefe que se dispara a tempo e horas...
Anoitece. O pai da Rosa já comeu o caldo e as sardinhas assadas,que saborosas elas estavam e foi espairecer até à Boa União. para o paleio com os amigos e  uns copitos.
 O Manuel da Fundição olha, embevecido, para a a janela de um primeiro andar do Largo de S. Miguel
 moldura de uma flor que é a luz dos seus olhos.
Ali, à Regueira, o Joaquim Estivador, que hoje fez serão,tem que se aproveitar, que a vida está
má,depois de jantar, de camisola sem mangas a fazer sobressair o busto musculoso e forte. vem
até à soleira da porta, senta-se e dedilha uma guitarra. E o dlím-dlim-dlão, emotivo e sentimental, faz
chegar a vizinhança às janelas.Duas cabecitas loiras e rosadas assomam à porta. O Tonho e a Mélita. Dois filhos. Dois céus. O Joaquim pousa a guitarra. E aquelas mãos calosas,grosseiras, gretadas por anos de cargas e descargas, onde vão elas buscar tanto mimo no jeito,tanta doçura nas caricias?
A Júlia lavou a loiça do jantar. E a boca estendeu-se-lhe num sorriso pleno de felicidade.
O peito alto, arfa de intima satisfação. Quase orgulho, por ver o seu homem e os seus filhos ,
em comunhão de beijos e afagos. Só o que eles não adivinham, não, é a linda quadra de amor que
os seus gestos escreveram na soleira da porta da Rua da Regueira..
Alfama,eterno ex-libris de Lisboa...
Lisboa, tão linda és... .

Revista Notícia, 1967, texto de Francisco Radamanto, Fotógrafo não identificado.

2 comentários:

Anónimo disse...

Saudades do tempo em que "Cheira bem cheira a Lisboa "

Carlota Joaquina

T disse...

Verdade:)