8 de maio de 2011

A Rua dos Ferros


A Rua Nova dos Ferros
"A iluminura é linda. A parte central da página onde se começa, em gótico, o oficio dos mortos -  Incipit officium mortuor- ,  limitada por um filete que nos cantos superiores se desenvolve em arcaturas ligando com o outro filete extremo, assenta sobre a composição simbólica que desce pela margem direita, passa na parte inferior e sobe pela margem da costura, representando a quebra dos escudos pela morte de D. Manuel. Dentro da arcatura média, ao alto da página, que fica como um tímpano sobre o rectângulo de pergaminho onde os caracteres góticos se traçaram, vê-se a Morte conduzindo ao ombro um caixão sobre o qual uma tira de pano passa, voejando as pontas, uma para cada lado, para equilíbrio da composição.
A capital, delicadamente feita, deixa ver, no vazio da abertura, a cena solene da encomendação de um cadáver que repousa entre tocheiros, e ao qual o clérigo lê o ofício junto do acólito e à frente de outras figuras. Tudo isto é tocado de  uma unção e de uma delicadeza admiráveis, realçadas pela justeza decorativa das cores que fazem dessa folha de pergaminho do precioso livro uma verdadeira obra de arte.
Ao interesse artístico sobrepõe-se, porem, o possível interesse documental, porque alem da cerimónia que ali se representa, figura-se também um aspecto, o único aspecto conhecido da notável rua Nova dos Ferros, nesse tempo a melhor, a mais vasta, a mais rica, a mais comercial artéria de Lisboa, já de há muito cognominada O chiado quinhentista’.
Atente-se, pois, na página.
O que a gente vê é o seguinte:
Na margem terminal perspectiva-se o nobre arruamento afunilando se para o nascente, indo dar a um fundo de casario indicado arbitrariamente. A rua apresenta uma guarnição de prédios, todos da mesma altura, ouriçados de ventanas, torrinhas, chaminés e corucheos, sôbre telhados de grande inclinação, o que tudo lhe empresta um ar francês, denunciador do apego do artista ao estilo-padrão dos iluminadores antigos no tocante ao arranjo decorativo da composição.
Nem os prédios eram todos da mesma altura, nem os telhados podiam ser assim empenachados de tanta excrescência arquitectural. A uniformidade das janelas em renques, todas de igual formato e à mesma altura, como a directriz rectilínea da rua, são outras provas de que a pintura se fez de cor. A planta que adiante se reproduz documenta-o exuberantemente.
Os ferros que nomearam a rua Nova estão indicados mas ocupando muito maior espaço do que na realidade ocupavam.
Vendo a iluminura tem-se a impressão de que, pelo menos, dois terços do arruamento eram acompanhados, a meia largura, pela gradaria.
As edificações, do mesmo tipo das outras, que se vêem à parte esquerda esquinando para uma rua hipotética que, pela orientação, só poderia querer representar a travessa que ia dos Ourives de Oiro ao adro de S. Julião são também coroadas de dezenas de torrinhas e chaminés. Ainda se poderia supor que o aspecto da rua fosse tomado não do seu terminus poente, mas do meio dela, o que tornaria correcto o que parece excessivo no que respeita aos ferros; mas deste modo a rua que se pinta na margem esquerda ficaria sem explicação, pois na Rua de São Gião, que seria, então, a que se representa na parte inferior da iluminura, nenhuma outra se abria paralelamente à dos Ferros. Como se isto não bastasse, há ainda a ter em atenção que o préstito da “quebra dos escudos’ tinha o seu caminho natural pela rua dos Ourives do Oiro, então chamada rua Nova  de El-Rey’, que era o comum trajecto entre o chiado’ de D. Manuel e o Rossio.
Todas as casas pintadas na linda página iluminada assentam sobre esteios de pedra, mas a sua uniformidade é ainda um argumento a favor da minha conjectura de que a composição se fez de memória. Era um elemento seguro para caracterizar a rua, e foi, decerto, uma indicação facilmente sugerida ou um pormenor de mais sólida reminiscência.
A solenidade do pranto’ e a da quebra dos escudos, figuradas pelo pincel do iluminador, sofrem igualmente da preocupação artística de compor a página abstraindo de exactidões que não eram o fito que se procurava. Se a reprodução da acena fosse exacta os escudos negros que se vêem quebrados no solo, na parte inferior, deviam no estar a meio da rua Nova, onde um juiz do crime da cidade os partiu naquele dia 17 de Dezembro de 1521; e o leitor do pregão que, com a sua arenga lamentosa, havia de mover as lágrimas e a grita dos pranteadores, teria de estar a lê-lo a cavalo! Se assim fosse, poder-se-iam identificar esses vultos negros que acompanham o préstito e que depois de caminhar até o Rossio para a quebra do terceiro escudo, voltariam a Sé, por São Nicolau. Os vereadores D. Pedro de Castelo Branco e João Brandão, seriam as duas figuras que se seguem ao pregoeiro do pranto’, empunhando as varas da dignidade municipal, e o que vai a cavalo, à bastarda, sobre as  gualdrapas rastejantes de raso, levando ao ombro a haste negra donde se desenrola, até roçar pela rua, a bandeira de luto, seria o alferes da cidade Nuno Alvares Pereira. Ver-se-iam, também, no grupo dos fidalgos, capitaneando-os, o barão de Alvito e os condes de Penela e de Vila Nova; mas não se fantasie porque a composição apenas figura, ao estilo da época) uma dessas solenidades reais, com carácter indeterminado, porque outra não fosse realmente a intenção do artista ou por carência de elementos esclarecedores."



Gustavo Matos Sequeira, Tempo Passado, Editora  Portugália, 
Iluminura Dom Manuel I, Livro de Horas, Cerimónia  Quebra Escudos

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