3 de maio de 2011

Crónica do Porto

Para deixar o Porto, há vários caminhos; para entrar, um só,o rumo imposto pelo coração tranquilo e amante. Vê a gente de longe aquela mole granítica e vá de sentir um baque como quem reencontra a memória da infância; depois, mergulha nas ruas de prédios patinados por temporais de séculos, cruza olhares com gente concentrada, apetece a gentileza de um vulto feminino: aos poucos, a cidade ganha as formas pesadas de uma maternidade feita de simpatia e humaníssimo calor, oferece-se como o colo acolhedor à espera do filho algures perdido. Amamo-la com a insensatez das coisas inesperadas, ao jeito doce de quem volta de longe à quentura do lar: murmurando “bons dias!” a quem passa, sorrindo, sorrindo sempre, mesmo quando a alegria extravasada fica assobio estridente nos lábios de quem chega.
Correm os dias,
e mais e mais se adensa a atmosfera de encantamento mágico. Lá para as tantas, temos um «café», amigos, obrigações, família, emprego a horas certas, entrevistas de negócios: mas a cidade permanece idêntica, dominadora, absurda e a cada vez os passos levam os olhos maravilhados por becos e calçadas, recheados de tons, que doem de sombrios e acordam uma tristeza fina e embaladora, vestida de nèvoazinha frágil e anémica. Ah, como pesam as tardes portuenses, meus amigos! E como pesa, também, a sua ausência!
Vogando no rio humano da cidade, deslizam poetas, empregadinhas em flor, brasileiros de torna-viagem, amantes de mãos dadas e silêncios enormes: vão desaguar em ruas cortadas por letreiros de «néon», em jardinzinhos ocultos, envoltos na doçura mimalha dos romances infantis, em pequenos mundos fechados com dimensões de berço. Como navios que vão para um destino certo, trocam, por vezes, cumprimentos distantes, desejam-se mutuamente “boa viagem!” em termos de um quotidiano igual a sempre, arvoram o sorriso desfraldado de quem vive, em solidão, uma aventura pessoal e possessiva.
Por mim, quando a tarde vem com seu cortejo delicado de mistérios alheios, dou-me inteiro à alegria de estar vivo e de amar: como quem tem de seu todo o tempo que queira, atardo-me nas esquinas iluminadas a ver correr o rio da cidade, mais claro e apaixonante do que esse outro por onde espraio os olhos nas manhãs de Maio azul e temporão. Escuto as conversas desligadas, deixo quebrar as mãos de encontro ao muro de sonhos, onde cada um tem uma pedra sua:  “Vou ter um vestido novo, Rita
Amas-me muito? O senhor Alves vai aumentar-me o ordenado O Porto ainda vai ganhar o campeonato O problema é a conta da farmácia Se eu fosse para África.. “
E que fazer, Deus? A cidade aí está, à espera de quem saiba desvendar-lhe o segredo, rasgando largas janelas por sobre o céu estrelado: basta um pouco de amor, um pouco de sonho, um pouco de esperança. E o rumo imposto pelo coração tranquilo e amante, sereno e tutelar.
As crianças sabem o caminho. Aprendamos com elas. 



Texto de Daniel Filipe, Revista Turismo, Janeiro de 1959

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