9 de agosto de 2010
Sem dizer água vai
«Derramaste el água, la niña/ y no dijistes - água va!/ La justicia os prenderá».
Miguel Cervantes, La casa de los celos
Quando se aproveita tempo de lazer para visitar alguns locais a trazer instantâneos de outras épocas, fica-se a pensar como tanto mudou em tão pouco tempo.
Tendo crescido com uma avó que gostava de relatar episódios dos primórdios da república, chega-se à conclusão de que as alterações dos últimos 20 anos (diria eu, talvez com subjectividade) afiguram-se ainda mais espantosas. Espectadora compulsiva de filmes e de alguns clássicos da literatura adaptados às primeiras novelas brasileiras deixando, entre tanta emoção, queimar o almoço durante um episodio de « A escrava Isaura» o que levou à morte os canários por intoxicação vinda do fumo de batatas carbonizadas, a avó Antónia nunca chegou a entender que as vídeo cassetes eram um recurso para lá das transmissões televisivas. Como lhe gravava séries e alugava longas metragens para que se distraísse, também não me pareceu relevante explicar-lhe detalhadamente qual o processo utilizado para ter «na hora» os clássicos do cinema que tanto apreciava… em determinadas fases da vida o conforto é suficiente, sendo cansativas as explicações. Ao seguir séries de acção de que era admiradora, nunca deixava de comentar (dado o seu espírito pragmático) durante as indissociáveis perseguições e fugas em automóvel «muitos carros estragam eles, um desperdício!».
Tendo visitado uma reconstituição da Idade Média, não pude deixar de sorrir por ter chegado uma vez mais à memória a minha avó, até ao fim dos seus dias detentora de uma invejável lucidez. Acabei por pensar em como o hábito aqui retratado acabou por perdurar ao longo dos séculos. Contava-me a avó Antónia que o meu avô, irrepreensivelmente trajado com um fato de linho claro, em moda de Verão, foi apanhado pelo conteúdo de um balde lançado de um quarto andar, só depois tendo ouvido o então corrente «água vai!» que, segundo os entendidos, acabou por dar origem à expressão «sem dizer água vai»… e como nos esquecemos facilmente de valorizar o progresso (ao que é cómodo a habituação é fácil) lembro ainda amigos que, não há tanto tempo assim, tendo recuperado um andar num bairro muito antigo da cidade, o que implicava construção de casa de banho, foram interpelados pelos idosos vizinhos do prédio, pois mexer na canalização trouxe problemas inevitáveis ao edifício. Reclamou a vizinhança «que modernice, uma casa de banho! E a água a pingar-nos no andar de baixo! Nós somos asseados e utilizamos os banhos públicos!».
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4 comentários:
Eu também sou da opinião que eles estragam muitos carros e poluem muito o ambiente com explosões malucas e cenários feitos e refeitos... Agora com as novas tecnologias já é possível criar uma explosão que destrua sem acender um fósforo, mas antes... era cá uma porcaria. Tem dias em que me abstraio desses pensamentos, mas outros... infiltram-se na minha cabeça e eu perco o gosto por aquele filme ou aquele episódio de uma série qualquer... :S
Quanto às águas atiradas pela janela... na década de 90 ainda presenciei muito isso. E era mesmo sem "água vai"!!! GRaças aos santinhos todos, a Camara municipal não achou modernice instalar o saneamento básico e já se vê cada vez menos àgua suja de lavar roupa, à mistura com outras águas altamente suspeitas, a correrem a céu aberto...
Não me quis alongar, Luísa, mas para a minha avó tudo era incómodo nos filmes, apesar de não perder um: explosões, perseguições com carros destruídos e, nas comédias, o clássico bolo de creme atirado à cara da vítima... (desperdícion de comida, dizia ela que viveu jovem racionamentos de guerra).
Quanto à falta de saneamento básico, cá pela área de residência ainda é preocupação em pleno século XXI... há ainda muito a fazer...
Nem me lembrei dos bolos (e resto da comida)!! Também tenho problemas com isso. Eu, graças aos santinhos todos, nunca passei por racionamento de comida, mas fui educada para não estragar. E viver com as freiras deu-me outra perspectiva de vida. Eu convivi com crianças que tiveram que procurar comida nos contentores e que ao chegarem lá a casa comiam como se não houvesse amanhã e as freiras tinham meses d trabalho para as "educar" e fazer perceber que já não precisavam de comer tão sofregamente. Então ver certos desperdícios... dão-me cabo da cabeça...
às vezes ponho-me a pensar que eles podiam fazer uns bolos com cremes da barba ou algo do género...
Eu também aprendi essas coisas, Luísa, sobretudo enquanto professora cooperante em Angola, uma boa escola para os tempos de adversidade, caso alguma vez se repitam...
Quanto à comida em filmes, lembro o do Woody Allen, 'A Rosa Púrpura do Cairo'... muitas das coisas são de 'faz de conta':)
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